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Reflexão sobre o “A importância do ato de ler” de Paulo Freire

Plano de Formação Continuada Territorial - Instituto Anísio Teixeira - IAT-SEC


Retomamos a agenda do Plano Territorial de Educação, uma das primeiras atividades foi a leitura o livro “A importância do ato de ler” de Paulo Freire, já tivemos alguns encontros on line utilizando a plataforma de vídeo conferência google meet, para aprendermos a utilizar a plataforma, confesso que ainda estou aprendendo e já tem atividades que devo fazer que não havia visto lá ao ‘navegar’ por suas abas. A formação continuada tem sido importante, em especial nesta fase que nos encontramos, discutir novas estratégias e ouvir as experiências dos nossos pares nos ajudar a perceber novas saídas para as questões que surgem com a educação remota.

Freire inicia sua fala no livro “A importância do ato de ler”, baseado em uma de suas palestras, chamando a prática pedagógica de política, a etimologia da palavra política, vem do grego antigo politéia, quer dizer “algo ou ações relacionadas com grupos sociais”. Podemos entender que Freire compreende a ação pedagógica como um fazer com um grupo social, não para, no sentido de sobrepor-se, mas com o conjunto de pessoas, e se política, portanto, requer minha escolha, minha decisão em realizar esta ação com/em conjunto.

O ato de ler, compreende uma ação pedagógica, que política, se faz no coletivo, não separada do contexto, ou do outro, pois se em um conjunto construímos comunidades, não podemos separar as práticas pedagógicas do entendimento do que é comum.

Ou seja, ler não se resume a decodificar códigos, entender o significado da palavra escrita, reproduzi-la, mas se antecipa a leitura e a decodificação do mundo, se alonga à compreensão do todo, dos processos sociais, culturais, econômicas e políticas da comunidade e do mundo.

Este é o processo atual que a escola realiza, em primeiro vem a leitura das palavras, decodificando e compreendendo seu código, para depois a leitura do mundo. A decodificação da palavra antecedendo a leitura do mundo.

Freire no ensino o contrário, a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra, “leitura e palavra se prendem dinamicamente”. O ato de aprender a ler e a escrever deve estar paralelo ao ato de aprender a ler e compreender o mundo, a realidade ao qual os sujeitos estão inseridos.

Lembrando de minhas experiências com a leitura, lembro de quando criança ia para a escola na comunidade rural que moro até hoje, em Passagem Velha, localizada no sertão norte da Bahia, pertencente ao município de Senhor do Bonfim. Lembro do short jeans que usava, as alpargatas de couro, a blusa vermelha (a farda da escola) e uma sacola branca, de supermercado, que usava para colocar o lápis, o caderno e a borracha. Colocava as alças da sacola nos ombros simulando uma mochila, e assim ia para a escola. Lembro da merenda escolar, da professora Neilza.

Lembro da cartilha, o cobrir constante das letras, o repetir das letras do alfabeto e dos números, escrever de 0 à 10, depois até 20, e assim até 100 ou mais, repetições até decorar e decodificar os códigos e símbolos.

Frequentei duas escolas, na minha comunidade em um turno e no outro oposto, outra que ficava na sede do município, Escolinha Nova Geração, minha mãe professora, dedicou-se para me dar a melhor educação, esta escola era particular, num preço acessível ao seu salário que na década de noventa no chegava à 100 reais. Meu pai, autônomo, motorista de ônibus e lavrador, batalhava para garantir o sustento de nossa família.

Lembro do primeiro dia de aula na escolinha na sede do município, o nervosismo, ao longo dos dias, esperavam que eu não soubesse ler ou escrever, o fato de ser filha de uma professora fez com que tivesse maior contato com a leitura, e assim me alfabetizei desde muito cedo, aos cinco anos lia e escrevia bem, foi na escola que descobri que minha mãe é negra e ligado a um sentido negativo. Na minha comunidade, remanescente quilombola, brincávamos, corríamos, livres pelas roças e terreiros, as famílias cuidavam de todas as crianças, como se todos fôssemos primos ou irmãos, meninos e meninas brincavam juntos e praticamente das mesmas brincadeiras.

Se leitura de mundo estivesse ligada a leitura da palavra, se texto e contexto fossem paralelamente estudados, talvez neste momento eu entendesse o que estaria acontecendo, mas através de minha mãe que fui compreender um pouco do que ela vivia diariamente: racismo.

Nesta retomada percebo as leituras de mundo que ia construindo, as brincadeiras na rua, ou como minha mãe me enchia de trabalhos domésticos aos domingos para me manter mais tempos em casa, enquanto minhas amigas estavam brincando de ‘guisado’ (comidas feitas em panelas de barro, fogo à lenha e pedras). Quando fazia tudo com a maior rapidez que podia para ir brincar, ia cedo, ajudava a juntar a lenha, acender o fogo, e logo ia para casa fazer as atividades, geralmente eu arrumava a casa e minha irmã mais velha cozinhava.Sempre tive acesso a muitos livros didáticos, os meus preferidos eram livros de história, lia e relia sobre as civilizações antigas, imaginava-me naquele lugar, em meio àquelas pessoas, vivendo aqueles costumes; Egípcia, Maias, Incas, Astecas.

Os livros de ciências preenchiam minha curiosidade sobre os animais, suas diferenças, em silencia reproduzia no papel as imagens que via nos livros, desenhando flores, insetos, pessoas.

Meu primeiro livro de poemas foi Isto ou Aquilo de Cecília Meireles, as palavras, as rimas, as histórias que se desenrolavam no poema, as imagens, faziam-me viajar e imaginar como se sonhasse acordada, o lia diversas vezes. Sei que o fato de minha mãe ser professora, foi o principal motivo para conviver de forma mais intensa com o mundo letrado.

Na roça, via que amigas minhas não tinham essa convivência, não frequentavam com regularidade a escola, não conversavam sobre poemas, desenhos ou histórias que haviam visto em algum livro.

Começamos a ler o mundo desde o momento que ouvimos os seus sons e enxergamos suas cores, após somos introduzidos a leitura da palavra, esta que deveria vir para complementar a leitura e a compreensão que temos sobre o mundo, entretanto o déficit neste sentido só tem crescido.

A prova SABE (Sistema de Avaliação Baiano de Educação) realizada diversas vezes durante o ano letivo escolar nos mostra isso, a capacidade de interpretação, compreensão, leitura de mundo, de imagens, é um grande entrave para que as notas do IDEB da Bahia subam, sem compreensão de mundo, sem a capacidade de compreender, unir a palavra com a realidade, adolescentes e jovens da rede estadual de ensino tem dificuldade para resolver os problemas matemáticos, interpretar os textos, escrever uma redação.

Sabemos onde está o problema, sabemos sua origem e onde fortalece-se. Com a ditadura militar a separação da universidade em departamentos, a divisão de cursos entre bacharelado e licenciatura, fazendo com que pesquisa e ensino ficasse um distante do outro, enfraquece os cursos de licenciatura na área da pesquisa, e sem o olhar pesquisador professores/as ensinam a palavra sem a leitura do mundo, sem a curiosidade de interpretar a realidade a nossa volta.

Na escola da roça a disparidade aumenta ainda mais, a história da educação nos conta, as primeiras professoras eram meninas, adolescentes, jovens da comunidade, que tinha apenas o fundamental, e assim reproduziam o conhecimento das letras, ao longo das décadas forma aperfeiçoando-se através de cursos, a exemplo do pró-leigo. Essas jovens começaram ensinando dentro de suas casas, a exemplo de minha mãe, que começou a dar aulas com formação até a quarta série, estudava e dava aulas, começou ensinando em sua própria casa, e fez este curso que me referi, ela era uma ‘professora leiga’.

Ao longo do tempo o currículo foi avançando nas pesquisas, no curso de pedagogia que comecei a cursar em 2009 já havia inserção de disciplinas sobre metodologias de pesquisa e construção de projetos, discussões políticas e cada vez mais críticas. No meu primeiro dia de aula na Universidade do Estado da Bahia, estava nervosa, ansiosa e feliz, a aula terminou e eu tive a sensação que uma cortina abria-se em meus olhos, como se começasse a ver o mundo como ele realmente era. Sinto que foi ali que comecei a ler o mundo “de verdade”.

Percebi também o quanto era difícil escrever por mim mesma, escrever sobre o que compreendia, entendia, eram novos aprendizados, aprendia a ler e a escrever. Antes eu decodificava os códigos e reproduzia-os em papéis muito mais do que compreender as diversas e complexas mensagens que vinham com ele.

Percebi também que na vontade em aprender a escrever por mim mesma, e ler o mundo eram conquistados aos poucos a cada vez que lia os livros da biblioteca, os discutia com meus colegas, nos corredores, na sala de aula com o/a professor/a, participava de eventos e encontros de estudantes para discutir temas relevantes para a educação, sobre a pedagogia, sobre política, economia, cultura ou outras questões sociais. Vi que quanto mais eu lia, melhor também escrevia, as palavras iam surgindo e preenchendo às páginas de papel.

No estágio que fiz na Educação de Jovens e Adultos levei estas experiências para a sala de aula, ler poemas, discutir sobre ele, escrever o entendimento que teve no caderno, ler notícias de jornal, ler livros de literatura, discutir com os colegas, registrar suas compreensões. Um dos momentos que guardo também foi a utilização do dicionário, todos os dias, via a curiosidade dos alunos ao procurar o significado de uma palavra ou conferir como é sua escrita, descobriam o significado de novas palavras, sorriam e seus olhos se surpreendiam com as novas descobertas.

É preciso adentrar no texto, adentrar nas palavras, não apenas compreender como ela é escrita na forma culta e seu significado, mas sua aplicação na interpretação da realidade. E estas ações precisam andar paralelamente uma a outra, para não acabarmos reproduzindo problemas, e a cada ano que passa, continuamos a culpar a série anterior pelo problema da alfabetização, dessa questão que é a fragilidade na compreensão de mundo. É preciso que entendamos e coloquemos em prática que o entusiasmo e a boniteza estar em descobrir, e esta descoberta vem com este descortinamento de nossa visão.





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