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Quais valores refletem você?

Hoje esta palavra 'valor' me inquietou... Ouvi ela diversas vezes, dentro de um contexto saudosista. Mas quais valores antigos são estes que tanto sentem falta? Me perguntei isto e vi rodeada por questões que me levaram ao encontro com algumas dores. O valor que construir vem de histórias de dores, certamente de um lugar diferente do conceito que tanto escutei neste dia.

O que é valor para você? Quais são os valores moldam suas lentes, cujas quais faz você enxergar e interpretar o mundo, as coisas, as pessoas?

A palavra valor pode significar merecimento, talento, reputação, coragem e valentia. Ainda ouvi que nos dias de hoje a maior crise que enfrentamos é uma crise de valores, pois esta afeta a humanidade, que passa a viver de forma mais egoísta, cruel e violenta. E concordo, o que muda o conceito é o meu lugar de fala.

Sócrates e Platão pensaram sobre valores ligados a moralidade, os conceituou como racionais, eternos e imutáveis. Depois vieram os valores éticos de Aristóteles... Saltemos para a igreja cristã, seus valores religiosos que guiaram por tanto tempo o norte, os valores religiosos diversos que guiam e orientam uma diversidade de grupos/fiéis e invadiram tantas culturas.

Lembro quando era criança que meu pai me contava histórias sobre a sua própria infância, acompanhado de seu pai na roça, meu avô, juntava feixes de lenha, tanto quanto poderia carregar na sua cabeça para vender em troca de alguns trocados, para comprar lápis e caderno e poder ter acesso a educação. Meu pai estudou até a quarta série do ensino primário, quatro anos de estudo, dos quais falava com muito orgulho, e ainda se gabava por ser melhor em divisões do que eu e minha irmã.

Minha bisavó paterna atravessou o nordeste, fugindo dos abusos sexuais de seu padrasto, juntamente com seus dois irmãos mais novos, ela tinha apenas quinze anos, acompanhou uma procissão de pessoas pobres, famintas, jagunços, e tantos outros, que fugiam da seca de 1915, e dos movimentos armados que ocorriam na época no estado do Ceará, chegou a Bahia onde trabalhou em um engenho de cana de açúcar, casou, teve filhos e netos.

Quando criança morávamos tanto quanto podíamos em nossa casa, primos, primas... Não pude fugir de viver o que minha bisavó viveu, com um primo. Tinha apenas seis anos de idade, ele já era adolescente.

Hoje na comunidade que moro, onde morou meu pai e os pais dele, vejo crianças com feixes de aimpim na cabeça, vendendo por uns trocados, para ajudar a família.

De que valores tão saudosos poderiam ter tais pessoas?

Valores que restringiam acesso a saúde, educação, serviços básicos à meu pai? Que não puderam ouvir minha bisavó e acreditar em sua história? Ou na minha, antes ou mesmo depois de adulta, ao reviver mais um momento de dor? Ou quando viram a cor da minha mãe, uma mulher negra, antes de conhecê-la realmente, para julgar seu caráter, seu lugar de orgiem, seu valor?

Eu posso dizer do qual eu ainda o sinto... O valor que herdo daqueles e daquelas que vieram antes de mim e me dão força e coragem para seguir: educação. De vez em quando minha fé pode balancear, mas ao sentir as dores que construíram meu valor, vejo que desistir não é uma opção. O sonho que construir durante meu processo formativo me guiou até o espaço que ocupo hoje como professora, e que tento passar para meus alunos, um sonho de liberdade, um compromisso que assumo com esta.

Certamente os valores que tanto ouvi hoje, dos quais são motivos de tanta saudade, não incluiu em seu projeto a mim ou a minha família, ou aqueles que me rodeiam. Momentos como este nos colocam em conflito conosco e com as situações que nos deparamos, por um lado é bom, nos faz relembrar a coragem que devemos ter, a dor e a luta dos meus, o amor dos meus, que permitiram que eu esteja aqui.

Os valores antigos ainda não se foram, prevalecem em nossa vida cotidiana, nos deparar com eles nos dá raiva. Aprendi com uma grande mulher, Audre Lorde, a canalizar e entender a minha raiva, a raiva que leva lutar por aqueles que lutaram por mim, mas também o amor, que aprendi com Bell Hooks, o amor não sentimental ou romantizado, mas como prática moldada diariamente por minhas mãos, por minhas ações. com elas e com Grada Kilomba aprendi que a educação cura, a teoria cura. Com Paulo Freire que a pedagogia pode ser a própria liberdade, não se dissociam. E com meus pais que tudo o que preciso está dentro de mim, sempre esteve, e sempre me acompanhará.

Aos saudosos, digo, essa fantasia, essa mentira nada inocente, precisa ser assumida pelo o que ela é, pela sua forma real, torta e estranha de ser. A mentira que você espalha mata, quando não literalmente, o faz simbolicamente. Não espere meu consolo ao se deparar com a verdade, espere orgulho quando finalmente você se deparar com a seguinte questão: o que posso fazer hoje, para desmantelar os valores antigos, que colonizam minha mente e minha ações? Como posso agir para que meus valores de dominação deixem de ser naturais? Em que contribuir para que outros tantos possam desnaturalizar a ideia que alguns nasceram para controlar e dominar e outros para serem submissos?

Não fico surpresa dessa noção de sociedade segura ter ganhado força e causar o saudosismo de tal fantasia idealizada. O que me espanta é que quanto mais crescem as estatísticas de violência e desigualdade, mais reforçada é a ideia de legitimar o passado segregador que coloniza um todo social.

O valor que proponho caro leitor vem de uma revolução, ela nasce nos livros, e ganha força e corpo científico e libertário. Sugiro ainda trocar a palavra valor ou outra - diversidade.

Comecei a escrever este texto com dor, e termino com coragem, e reformulo a pergunta que o intitula: qual diversidade reflete você?




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