Memórias e cenas da construção identitária de uma professora
- Edicarla Correia de Sá
- 6 de out. de 2019
- 5 min de leitura
A construção de um compromisso com a diversidade cultural
Nosso compromisso com a diversidade cultural, com o multiculturalismo, deve ser feito constantemente, diariamente, por ser difícil e exaustivo construir uma prática transformadora para nós professorxs, também, porque dentro do contexto da educação não é possível criar técnicas perfeitas, somos imperfeitos por natureza, relações dialéticas constructas moldam sociedades por gerações, e por isso mesmo o refazer deste compromisso entre educação e diversidade deve ser sempre renovado.
É exaustivo ao passo que é transformador e nos coloca num movimento de crescimento circular, pois enquanto os sujeitos, alunxs, crescem no processo de ensino e aprendizagem, nós professorxs crescemos em paralelo, e se colocar neste lugar de igualdade, sair da hierarquia que nos coloca tradicionalmente a profissão é algo difícil de ser feito.
O estado da Bahia está com um novo programa que já chegou as escolas públicas de ensino médio, o programa + Estudo, onde alunos com melhores desempenho em português e matemática irão dar aulas de reforço aos próprios colegas, inicialmente na escola em que trabalho fizemos uma formação inicial sobre ética na sala de aula, relações interpessoais e como se desenvolverá à proposta, horários e turmas (em outro momento falemos mais sobre este programa). Perguntaram-me em meio à esse movimento, se eu sempre quis ser professora, eu lembrei que quis ser tantas coisas, de médica à astronauta, mas professora sempre foi uma realidade, minha mãe professora, e quando se é do interior, zona rural, esta parece ser a opção mais viável e que todos esperam de você.
Para além disso o ser professora sempre esteve presente nas brincadeiras de criança, o brincar de escolinha sempre contemplava as tardes entre as amigas da infância, com direito à quadro, giz, folhas de papel e lápis, e repetíamos o ser professora que vivenciavámos na nossa escola, ali no brincar.
Minha primeira experiência profissional ao entrar no curso de pedagogia foi lecionar no ensino fundamental de quinta à oitava série, no Colégio Cazuza Torres, em Senhor do Bonfim, dava aulas de matemática e redação no turno matutino, não foi fácil, ainda mais porque sempre quis fazer algo diferente daquilo que entendia como entediante, queria que os alunos, já taxados de desinteressados nos estudos e sem expectativa de vida, tivessem entusiasmo e gostassem de estudar.
Acredito que se alguém sai de sua casa para a escola, não é mero cumprir tabela e frequência, algo naquele lugar acontece e possui significado para quem o busca. Inventava dinâmicas, gincanas e brincadeiras, muitas vezes fui pega de surpresa por questões que ainda não sabia como lidar, mas busquei algumas saídas dentro das minhas possibilidades na época.
Alguns professores ficavam curiosos sobre o que acontecia na minha sala de aula, porque os alunos começavam a mostrar algum interesse, tentava manter uma relação de respeito com os alunos, porém próxima e horizontal, buscava ser professora e também amiga, ouvia sobre suas vidas, suas histórias. O ouvir fazia toda a diferença.
À exemplo de um teste que vivi, na turma de sexta série, (chamo de teste, por ser minhas primeiras experiências como professora, por serem meus primeiros passos na docência de maneira formal), uma aluna simulou com um saquinho plástico de ‘geladinho’ sexo oral, estava copiando no quadro e os alunos começaram à fazer uma algazarra para chamar minha atenção, quando me virei e vi a cena, dei graças à Deus que o sinal tocou e sai da sala o mais rápido possível.
Fiquei chocada no momento, não soube o que fazer, o toque do sinal para trocar de turma foi minha saída, mas pensei muito sobre aquele comportamento e o que fazer sobre, não poderia entrar novamente lá como se nada tivesse acontecido, não poderia levar o fato à direção por imaginar que os alunos ou a aluna, especificamente a que representou a cena, poderia ser punida por isso, e isto poderia podar todo o trabalho de aproximação que estava fazendo, e mesmo no início da minha profissão, sabia que esta atitude colocaria em risco não só o trabalho que estava fazendo, mas a chance de entender os motivos que levaram os alunos a ter tais comportamentos.
Ao voltar outro dia nesta turma, levei uma 'caixa de dúvidas', eles deveriam escrever e colocar na caixa qualquer coisa que tivessem dúvidas ou curiosidade de entender, disse que à próxima vez que nos encontrássemos seria uma 'aula-formação', que se sentissem livres para perguntar sobre qualquer coisa que tivessem dúvidas e não precisava se identificar.
Bem, o dia da aula chegou e foi aquela curiosidade que mexia com à ansiedade dos alunos e à minha também, principalmente se estaria preparada para responder as suas dúvidas, neste momento que devemos também ser humildes e entender que dentro de uma pedagogia transformadora, o professor não é o detentor de todas as verdades do universo, e que se naquele momento, eu não soubesse alguma informação, certamente buscaríamos juntos as respostas.
As dúvidas geralmente se deram em em torno da sexualidade, desenhei no quadro o órgão genital masculino e o feminino e expliquei sobre reprodução, meios de prevenção, sobre o que era à menstruação feminina, higiene pessoal, uma das perguntas que mais me recordo, que envolvia tanto a questão da sexualidade quanto questões sociais foi: “o que acontece se uma menina se envolver com um homem casado?”
Foi necessário mobilizar uma aula sobre machismo, ética, solidariedade feminina, dentro das minhas limitações e conhecimentos naquela época fiz algo que hoje vejo com encantamento, sem leituras e estudos aprofundados sobre feminismo, machismo e sexualidade, fiz uma ‘aula-formação’ com os alunos, o sinal tocou e dessa vez nem eu, nem eles quiseram sair correndo da sala. Nossa relação interpessoal melhorou muito a partir daí, construímos algo que hoje vejo como meus primeiros passos para a minha identidade de professora, no desenvolver de uma pedagogia transformadora, no transformar da sala de aula em um ambiente seguro, em que todos poderiam questionar, e que todas as dúvidas eram reais e válidas para a construção de um conhecimento, uma educação que orienta e abre portas não apenas para à gramática ou às expressões algébricas, mas para à vida.
É uma longa luta, que necessita de disposição, olhar atento e paciência. Como disse desde o início do texto, um compromisso, um desaprender para aprender. Cora Coralina nos diz que é feliz aquele que ensina o que aprende e aprende o que ensina, quando nos propomos a um fazer transformador, à educação se desenrola num ir e vir, as tessituras do conhecimento circulam pela sala de aula, construir este processo não é fácil, temos medo de perder o respeito de nossos alunos, de perder o ‘controle’ da sala de aula. Porque ainda temos à necessidade de controlar, vigiar, e até mesmo de punir aqueles que fogem deste controle da qual também somos cobrados em ter, e como somos cobrados por isso! Como se o silêncio e à imobilidade dos alunos fosse uma garantia para o aprender-ensinar.
Este silêncio, quando ocupei o lugar de aluna na escola, estava mais ligado à falta de segurança, medo de falar, de saber se aquilo que estava pensando era mesmo certo ou era total devaneio. Mantinha-me distante, tímida, atrapalhava até o relacionamento com os outros alunos, e mais ainda com a professora da turma.
Fazer da sala de aula um contexto democrático onde todos sintam à responsabilidade de contribuir é um objetivo central da pedagogia transformadora nos ensina bell hooks, colaborar para o desenvolvimento das pessoas é uma grande responsabilidade que exige de nós um compromisso diário com a diversidade, um refazer e desvelar-se do medo que nos afasta de criar e recriar uma pedagogia que enfrente a política de dominação que se reproduz no contexto educacional, para construir na escola uma “comunidade”, onde seus integrantes, todxs elxs possam crescer sem medo, autônomos, responsáveis pelo seu desenvolvimento e pelo/do outro, onde todas as vozes se encontram e possuem igual importância.

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