top of page

Cartografia dos afetos – a arte de narrar de si e do outro


No dia primeiro de julho de 2020 demos início ao projeto Ciclos de Formação, da Universidade do Estado da Bahia. Estudamos textos diversos que compreendem o universo da diversidade, deficiência, gênero, sexualidade, entre outros temas de necessária e urgente discussão, para reflexão do ato de ser docente. De início o que se imagina de um grupo de estudos – são pessoas reunidas para discutir um texto, o que geralmente pode ser, mas éramos apenas mulheres discutindo textos que partem de nós, de nosso lugar de fala e de nossas experiências.

Foram momentos que conseguimos criar e fortalecer laços afetivos, que nos deixaram confortáveis e seguras para trilhar esta formação, pudemos entrecruzar a teoria com a nossa experiência e criar algo novo em nós. Às vezes ainda me surpreendo com o poder que nós mulheres temos de criar contextos que privilegiam mudança social através do afeto e da crítica.

Até porque sem a crítica não há revolução, nos diz Freire, estudar é o nosso maior ato de rebeldia diante de um mundo que nos diz ‘este não é seu lugar’, ‘você não é capaz’, ‘você não acha que está querendo demais? Sonhando alto demais?”, “louca”, “esquerdopata”, “não leio seus textos, só pelo título vejo que são doutrinadores”, “viadinho”, “bruxas”, “psicopatas”, “putas”, entre outros. Foram nestes momentos formativos que re-criamos possibilidades, novos movimentos revolucionários que se dão internamente e externamente a nós, por se tratar do narrar, afetar e sentir, tornamos possíveis que mudanças aconteçam, dentro de nós, para que nossas ações possam materializar aquilo que acreditamos, que buscamos realizar através de nossas motivações, sonhos, desejos, amores...

São muitas as vozes que querem deslegitimar nossas lutas, lutamos por todos, todas e todxs, buscamos liberdade, ou até mesmo mais do que isso. Clarice Lispector disse “liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”. Nossos anseios são tão grandes e nascem de feridas igualmente profundas, porque são históricas, sentidas diariamente, chegam a entalar a garganta; e ainda dizem “mas precisa mesmo chorar?” Preciso sentir e expressar o que sinto, não engolirei palavras ou lágrimas, nunca mais.

Por muito tempo engoli o choro, busquei não sentir, indiferente a dor acreditei que assim superaria minhas feridas, meus medos, até que a ferida sangrou, e me fez a encarar de frente, minha escuridão, meus fantasmas. Dessa forma, num momento em reunia coragem para continuar pude experenciar a cura, e não estava sozinha, estava ao lado de minhas irmãs: amigas, professoras, viajantes, mães, tias, avós. Todas num movimento de rememoração, reflexão, ação e formação.

Ainda ouço alguns chamarem de ‘mimimi’ esse jeito nosso de fazer ressoar nossas vozes de protesto contra as diversas formas de opressão, mas ninguém nunca lutou uma batalha apenas em campos de flores, são entre espinhos, balas perdidas, xingamentos, agressões... As lutas se dão em campo minado e ninguém faz uma revolução calada, no campo do silêncio. Você então, ouvirá a minha voz e verá o meu corpo ocupando espaços diversos pelo mundo, você verá meu sorriso, minhas lágrimas, e mesmo que não se permita sentir o meu amor, algo ainda tocará em você, o incomodará, enquanto espalharei formas de afetos por todos os lugares onde estiver presente.

Minhas lágrimas não são de tristeza, não quero arrancar pena de você, choro porque sinto e a minha emoção extravasa com intensidade, a mesma que uso para lutar as minhas e as nossas batalhas.

O ciclo de formação foi mais um caminho em que nós, mulheres, pudemos trilhar através da reflexão-ação-afeto para re-criar a si e as outras, movimentos de resiliência, vai e volta, e nunca volta da mesma forma que foi, sempre é mais enriquecida, forte e carregada de afetos. Eu sou porque nós somos, eu sou porque minhas irmãs estão comigo, diferentes entre si, carregamos partes de umas e outras, as chamo e elas estarão comigo, e assim eu para com elas. Escrevemos pensando em si e nas outras, para e com. E apenas quem se permite isso pode sentir como é estar unidas pela crítica e pelo amor.

Se pensas que falo de amor como um tipo de romantismo clichê, está enganado/a. Falo como prática de liberdade para lembrar-me o tempo inteiro quem eu sou, que tipo de profissional desejo ser para as pessoas com quem trabalho, que meu corpo e mente devem estar alertas para não se permitir aprisionar às correntes coloniais que fundamental esta cultura de ódio, desamor e violência. Para que minha consciência não se perca em ansiedade e tristeza, para manter a fé e a esperanças acesas.

Esta cultura que não nos aceita, não nos querem negras, não nos querem lésbicas, transexuais, liderando empresas, nossos próprios negócios, não nos querem professoras que criam suas próprias metodologias e formas próprias de fazer pesquisa que partem de suas crenças e valores, de sua crítica. Não nos querem no lugar de intelectuais, escritoras, a frente destas lutas, falando de amor, de liberdade. Não nos querem coordenadoras pedagógicas em escolas públicas ou particulares. Pois além da necessidade e desejo de controlar nossas mentes, corpos, querem controlar nossos afetos, nossa forma de sentir e estar com o mundo. Ou seja, não nos querem gente, pessoa, persona.

Muitas vezes pode ser cansativo, e como dói sentir a si e ao outro, é um deslocamento, um afastamento para poder encontrar-se novamente, mas se não fosse esse ato voluntário de deixar-nos afetar perderíamos aquilo que nos faz seguir adiante, nossa humanidade. Seríamos o que é esperado de nós, objeto, coisas, e coisas não amam. Estamos fazendo o caminho contrário, estamos criando nossas epistemologias que partem de nossos lugares de dor, de crença, valor, amor, parto, sangue, de nosso mais profundo interior. Queixam-se de nos reunimos e intitulamos nosso encontro de ‘ovulário’ em vez de seminário, não compreendem que estamos a convocar outras mulheres a escreverem suas histórias, as re-criarem conhecimento a partir de si e do nós.

Não será o opressor que ditará as formas de narrar nossas próprias histórias. Nossos movimentos e passos são para a liberdade; não aceitam porque presos, também não nos querem livres, eu te entendo, mas não espere minha inércia, porque dói muito mais está cego e insensível ao mundo do que intervir com ele.

Já tentaram tirar de mim meu amor e humanidade, uma coisa, mas neste caminho de si e do nós aprendi a dizer NÃO. Consegui me organizar política e criticamente, ao lado de muitas mulheres que encontrei pelos caminhos formativos que trilhei, pude encontrar um lugar seguro para amar e deixar correr minhas lágrimas, ser acolhida, abraçada, formada.

Encerramos uma etapa do Ciclo de Formação da UNEB, mas não se findou, modificou-nos para sempre, sementes forma lançadas à terra, regadas, e nasceram novas pessoas, a partir daqui carregamos em si outras mais, caminharemos juntas, para buscar, em nossos contextos de luta, nossos lugares de fala, unir mais vozes ainda para este entoar de liberdade.

Quero que sinta esperança nas palavras que tenho escrito, que nossas forças possam se renovar para o enfrentamento das vozes daqueles que lutam para nos calar e desqualificar nossas pautas e nossas emoções. E por meio de afetos daremos a luz novas reflexões e ações. Saibam que ao mesmo tempo que escrevo estas palavras, meus olhos enchem-se de lágrimas, meu sorriso ressalta no rosto, sinto aquele nó na garganta, e eu imagino você, imagino que estamos juntos/as neste re-criar de uma nova sociedade para amor, para a liberdade, eu sinto esperança, eu preciso sentir para continuar viva.

Cartografar nasce do narrar, sentir, afetar e criticizar, acredito que quando nos disponibilizamos a narrar, contar nossas histórias, começamos a fazer o caminho contrário da colonização. As máscaras que silenciaram os muitos povos a tempos atrás, máscaras de ferro utilizadas para oprimir, amedrontar e silenciar pessoas, tirar de si identidades e subjetividades; hoje, elas são invisíveis muitas vezes, simbólicas, mas reais e presentes. Ao narrar de si e do outro quebramos as máscaras que nos foram colocadas porque nos permitimos existir atrás esta autorreflexão de si e do outro.

Assim também na educação, se não assumo o compromisso ético de criar estes movimentos de propiciem a liberdade, acreditar e potencializar os sonhos daqueles que esperam de nós um olhar humano, nós estaremos contribuindo para reforçar as máscaras históricas que reproduzem as formas de viver em sociedade, as máscaras que se traduzem no racismo, no machismo e na violência. Parece forte o que digo, mas é isto que acontece, você sabe e sente em seu interior o quanto isso é verdade.

Existe na sala de aula aquele aluno e aluna que está no ensino médio e mal sabe ler, foram empurrados pelo sistema, aqueles que vão para escola por que, muitas vezes, é o único lugar onde sentem-se seguros e recebem um mínimo de afeto. Muitas das vezes são estes que são rotulados de “não querem nada com a vida”, percebe que o colocamos uma máscara, o rótulo significa que ele ou ela não tem vida, sonhos, oportunidades ou expectativas.

Por muito tempo a escola esse lugar seguro para mim, para muitos de nós, um lugar de escape da minha realidade, e entendo o que representa para muitos dos estudantes que estão ocupando aquele lugar.

Sei também que estar cansado e acabar entregando os ponto, colocando desculpas pelas dificuldades burocráticas que limitam nossa atuação por exemplo, nos coloca em um lugar de ‘conforto’, porque não precisamos confrontar a diversidade, não precisamos confrontar nossos medos, ignorâncias, traves que nos cegam e ideologias que nos condicionam, pois o confronto a esse lugar de ‘conforto’ gera conflito, e como tem gerado conflitos e resistências. Mas se hoje ocupo este lugar de construção de crítica, preciso ser ético e não ficar inerte diante do que condiciona a mim, e a nós. Porque, o mais do mesmo já tem sido feito todos os dias e não precisamos mais disso, precisamos fazer diferente. Não adianta esperar outros resultados, querer uma sociedade diferente, se representamos o mesmo papel em nossa rotina.

Que a crítica seja a nossa rotina, busquemos restaurar intersubjetividades, em si e nos outros, porque esse movimento, interno e externo, deve ser constante. Que a busca por re-criar pedagogias cada vez mais humanas, realmente transformadoras, façam parte do dia a dia do nosso fazer profissional, pessoal, como possamos, como Paulo Freire diz, se animar e se alimentar cotidianamente de generosidade autêntica, de pura reciprocidade. Isto é permitir-se afetar pelo outro. Para assim, nos esvaziarmos cada vez mais desse humanitarismo hipócrita, egoísta que encarna a própria opressão e desumanização.

Apesar do encerramento do Ciclo de formação, iniciamos algo que não se findará aqui, perpetuará e ressoará por muito tempo, está atrelado a nós e nos outros e outras que cruzarão nossos entre-caminhos, nos afetamentos que serão criados através da reflexão, da crítica e do amor.




105 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
Post: Blog2_Post
bottom of page