top of page

Carta sobre uma experiência deslocadora

Iraquara, 09 de março de 2020


Escrito por Vaneza de Oliveira de Souza

Professora da Rede Estadual de Educação, município de Iraquara, Bahia.



Caras/os colegas professoras/es,

Hoje vivenciei uma experiência de muitos atravessamentos, que me tocaram de forma profunda. Aqui falo da experiência na perspectiva de Larrosa (2011, p.7), como aquilo que me passa, que me toma, num movimento de ida e volta que produz efeitos sobre mim, sobre o que penso, o que sou, o que sinto, “daí que o resultado da experiência seja a formação ou a transformação do sujeito da experiência”.

Ao ser convidada pela gestão da escola (em Iraquara-BA) para uma roda de conversa com o tema relacionado ao Dia Internacional da Mulher e relações de gênero, senti muita alegria, primeiramente, por ratificar a sensibilidade da escola em trazer essas discussões, a preocupação de que os/as estudantes tenham essa oportunidade dentro desse ambiente. Segundo, porque seria oportunidade de ter um momento direto com os/as estudantes, no contexto de afastamento da escola (licença para aperfeiçoamento), com os temas de pesquisa (raça e gênero¹) e poder sentir como esse tema chega para eles/elas.

Não posso negar que senti também uma preocupação: como tratar esse tema de forma que toque as/os estudantes? Como conseguir que elas e eles percebam a profundidade dessas relações? Como trazer um tema espinhoso e, ao mesmo tempo, tão naturalizado para muitas meninas e muito mais para os meninos, acostumados com as relações desiguais que aprendemos desde a família, e se ampliam entre amigos, na escola, igreja, TV, e são reforçados nos discursos e atitudes cotidianas, redes sociais, brincadeiras?

Eu vinha de experiências em sala de aula, principalmente em 2019, que mostravam que os meninos não eram receptivos a essa discussão. Por outro lado, algumas meninas sempre se posicionavam, questionavam, apontavam comportamentos machistas no dia a dia da escola.

Pois bem, passei o final de semana pesquisando, procurando informações, imagens, dados, maneiras de trazer a conversa e ajudar a pensar, e imaginando: como essas informações podem ser recebidas? Como tornar esse momento mais dialogado? Como deixa-las à vontade para falar de suas experiências e tornar o próprio momento uma experiência para elas e eles? Como ajudar os garotos a perceber esse lugar de alteridade, a ter empatia, a perceber a perversidade de muitas ações cotidianas? Como talvez chegar até mesmo a despertar algumas e alguns a pensar estratégias de combate?

Nesse ínterim, lembrei da observação² que fiz na semana anterior na escola e que chamou atenção, no momento do intervalo, quando os garotos se perfilaram no corredor, nos dois lados da parede e esperavam a passagem das meninas pra gritar, fazer barulho, chamar atenção para essa movimentação delas. Fiquei observando a ação dos meninos e a (re)ação das meninas. A ação deles era da ordem da coação, sentiam, aparentemente, um prazer em intimidar as meninas. Elas, por sua vez, sentiam-se acuadas, passavam agrupadas em trios ou duplas. Algumas destemidas, olhando para frente e cabeça erguida, outras quase se escondendo ao lado das amigas. Do lado do portão, que dá acesso ao banheiro feminino (após o corredor) e à maioria das salas de aula, outras meninas paravam e comentavam entre si: “eu não vou passar”. Outras insistiam: “vamos sim, deixe de besteira”. E foram se acumulando, algumas meninas sem coragem de passar por eles, esperando acabar aquela “organização” masculina para terem acesso ao espaço.

Ali, eu pensava em como no ano anterior essas mesmas atitudes aconteciam repetidamente e nunca havia me chamado a atenção, como tantas atitudes machistas eram observadas e muitas vezes tratei como brincadeira de adolescentes. Entretanto, o sorriso no rosto daqueles garotos mostravam que algo mais havia do que simples brincadeira, talvez um ar de superioridade, de autoridade, de contentamento. As meninas eram privadas de um espaço seu por direito, ao passo que eles se sentiam autorizados a manter o jogo ou a ‘estratégia de poder’, como traz Faulcoult. Nesse sentido, Guacira Lopes Louro (1997, p.39), afirma que o exercício do poder se “constitui por ‘manobras’, ‘técnicas’, ‘disposições’, as quais são, por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas, aceitas ou transformadas”. Seria apenas uma impressão minha? Estava procurando coisas pra enxergar além da realidade? Ou estaria, depois de um certo distanciamento, aproximando o olhar e a lente para enxergar o que estava ofuscado pelas tarefas diárias, correria e cansaço? Caso realmente esteja ocorrendo, estariam as meninas impelidas a aceitar e absorver ou a contestar e transformar?

Talvez por isso Louro (1997) nos advirta que é preciso aguçar os sentidos para ver, ouvir, sentir os sujeitos em seu cotidiano escolar, observando gestos, roupas, sons, falas e silêncios, atenta aos pequenos indícios que demonstram as assimetrias de gênero. A autora afirma (p. 60) que há registros de “tendência nos meninos de ‘invadir’ os espaços das meninas, de interromper suas brincadeiras. E usualmente, consideramos tudo isso de algum modo inscrito na ordem das coisas”, ou seja, como atitudes naturalizadas e, portanto, sem necessidade de intervenção. Por isso, adverte que devemos renovar atenção, questionar e desconfiar das “práticas rotineiras e comuns, [d]os gestos e [d]as palavras banalizados”, desse modo aprender a desconfiar do que é considerado “normal” (p.63).

Outro fato interessante, nesse mesmo dia, uma aluna, ao lado de duas colegas e um rapaz, dizia que não achava justo que num grupo de 3 meninas e um menino fosse comum usar termos masculinos como eles e todos. Achei fantástico que ela tivesse essa percepção de como a linguagem pode demarcar relações desiguais de poder e fixar diferenças, nesse caso pelo ocultamento do feminino (LOURO, 1997). Conversamos um pouco sobre isso, o garoto, um pouco reticente, argumentava em defesa masculina, a garota contra-argumentava com segurança. No final, ele afirmou que não poderia sozinho argumentar com duas mulheres (eu e a aluna, as duas colegas ficaram caladas). Foi um momento bonito de ver, uma adolescente super centrada e segura, firme em seus posicionamentos e firme também na intenção de mostrar, de fazer perceber algo que, para ela, era tão evidente, mas que as colegas e o garoto, pareciam não compreender naquele momento. O estudante, que algumas vezes parecia concordar com os argumentos, sempre voltava a demonstrar o que me pareceu uma cumplicidade masculina que o posicionava na defesa do grupo, mas, ficou evidente que aquela discussão de alguma forma mexeu com sua forma de ver a situação.

Fechando esses parênteses, essa era minha preocupação, como tocar meninos e meninas para questionar as situações que estão naturalizadas nas nossas relações? E nesse caminho, segui até a manhã de segunda-feira, imaginando somo seria.

Entrava no auditório a primeira turma de estudantes de 1º ano. No primeiro contato com as/os estudantes já senti uma barreira, certamente pelo tema anunciado em sala. Propositadamente, usei o termo feminino, ao cumprimenta-los com a expressão ‘Bom dia a todas’, a qual problematizamos ao questionar o porque de os meninos sentirem-se incomodados por serem generalizados no feminino (eles questionaram de cara) enquanto as mulheres são o tempo todo generalizadas ou ocultadas pelo uso do masculino. Essa naturalização está relacionada ao uso da linguagem para produzir desigualdades (LOURO, 1977), e é pouco questionada pela maior parte das mulheres e homens, algumas/alguns dos/as quais até se incomodam ao ler ou ouvir as viações que não privilegiam o masculino, como os uso do x, @, a/o ou outras variações. Posso confessar que eu já me senti incomodada e não compreendia porque algumas pessoas marcavam essa variação na linguagem oral ou escrita.

Retomando o relato, durante a conversa, os meninos armados, fechados, às vezes sorriam e faziam comentários que insinuavam que eles são assim mesmo. Os corpos falavam, os olhares comunicavam muito do que a boca não expressava ou era dito com pequenas frases, cochichadas ou não, toques nos amigos, na medida em que seguíamos com a discussão. As meninas pouco interagiram, o que eu estranhei bastante, os meninos falavam mais e sempre no sentido de brincar com o tema, de insinuar que para eles aquilo não era algo importante. Poucas meninas se manifestaram quando perguntei se já haviam se sentido em desvantagem em algum momento por serem mulheres. Citei o exemplo do comportamento no recreio, aqui relatado, elas timidamente acenaram com a cabeça que se sentiam constrangidas, umas poucas pareciam mesmo alheias ao tema, talvez tivessem assimilado, como sugere Guacira Louro. Assim, seguimos até o final, entre as falas dos meninos e o silêncio das meninas. O professor que acompanhava a turma contribuiu com algumas colocações e exemplos importantes, sentiu-se incomodado com algumas atitudes dos meninos e até com o que nos pareceu, a princípio, uma certa apatia feminina. Depois, na ausência dos meninos, duas alunas comentaram que na escola o que mais havia era machismo, falaram sobre o nome “gostosa” escrito na placa da fila feminina da merenda, na forma como os meninos se referiam a elas com frases como “essa, eu vou comer”. Interessante que na roda ninguém tenha levantado a mão quando perguntei se alguém se considerava machista, apesar de mostrarem-se aparentemente dispostos a manter esse comportamento, assim como as meninas não relataram nada que as tenha feito sentirem-se em desvantagem por conta do gênero.

No recreio, comentei com as/os colegas meu estranhamento com relação à reação da turma, que poderia estar relacionada à forma como o tema foi abordado, talvez tenham se sentido distantes dessa realidade, não tenham compreendido o teor da discussão, a linguagem não foi adequada, faltaram mais exemplos do cotidiano. Algo parecia inadequado na minha abordagem. Muitas poderiam ser as causas da reação. Cabia uma autoavaliação.

Segui com a segunda turma, também de 1º ano. Optei por não fazer a discussão sobre o uso prevalente do masculino, pois pareceu inoportuna tamanha provocação a estudantes com pouca maturidade. Será que poderiam sentiram-se ameaçados em sua masculinidade? Tive a impressão de que se esse lhes parecesse, ainda que remotamente, um risco a correr, definitivamente não se abririam para ouvir. Não sei se foi uma atitude equivocada pelo receio de não alcançar o objetivo e pelas reações da turma anterior ou se foi uma escolha acertada para o momento e penso que essa pode ser uma discussão importante para outros momentos em sala de aula.

Dessa vez, havia alunas bastante participativas, interagiram, trouxeram suas experiências, argumentaram. Sentiram-se à vontade para falar de várias situações que viveram, ouviram, frases e atitudes que elas não aceitam como normais. Muitas disseram que nunca haviam parado para pensar sobre isso. Interessante que, nessa turma, elas citaram a situação do recreio como algo que incomoda muito, porque se sentiam constrangidas, com vergonha, muitas evitavam aquele espaço e frisaram que nunca passam sozinhas. Os meninos ficaram todos calados, com exceção de um estudante que participou com exemplos e posicionamentos bastante abertos sobre o tema. Os demais garotos ouviram, não demonstraram incômodo aparente e, nessa turma, ultrapassamos bastante o tempo de discussão, que seria de uma aula, para quase duas. No final, o professor que acompanhava, contribuiu com falas importantes, assim como a vice diretora, e seguimos um diálogo que me pareceu produtivo.

Ao fim da roda, duas alunas me procuraram para contar suas experiências com machismo na escola, expondo sentimentos de incômodo, tristeza, desânimo. Uma delas confessou que já chegou a se mutilar esse ano (em apenas 1 mês de aula) por conta de uma situação de abuso que sofreu na escola, quando um colega passou a mão em seu bumbum. O relato me tocou muito, mostrei apoio, a direção já conhecia o caso, já havia tomado providências. A estudante se abriu de uma forma muito verdadeira e colocou situações pequenas que feriam sua dignidade, sua auto-estima, até sua vontade de viver, todas atreladas à gênero. A colega ao lado, mostrava apoio e procurava ao mesmo tempo apoio para suas dores, que eram outras. Nos abraçamos, nos acolhemos, nos apoiamos. Naquele abraço, senti o quanto muitas meninas se calam e sofrem, algumas talvez nem tenham ciência do porque às vezes se sentirem tristes ou desvalorizadas.

O olhar da maioria das meninas parecia de identificação, o dos meninos, de enfrentamento, como se estivessem expostos a uma situação incômoda. Assim também foi com a segunda turma, de 2º e 3º ano, onde as reações marcadamente e explicitamente conflitusosas, mostravam algumas meninas destemidas, dispostas a enfrentar e argumentar diante da realidade em voga, e os meninos dispostos, igualmente, a demarcar sua insatisfação com aquela conversa. Talvez o fato de as turmas do 2º e 3º ano terem entrado na sala nos momentos finais do diálogo com a turma do 1º tenha acirrado a sensação de defesa nos meninos, pois nesse momento falávamos sobre a necessidade de reconhecer e combater o machismo nas relações cotidianas. Era o fim sem passar pela preparação gerada pelo início e o meio da discussão.

Na primeira turma, também de 1º ano, muitas meninas participativas e bastante cientes das atitudes diárias de machismo (alguns meninos incomodados), apontaram que há machismo, que sofrem muitas situações cotidianas, inclusive na escola. Os meninos se reviravam nas cadeiras ao ouvir alguns exemplos, em específico, como assédios diários, de passar a mão, de oferecer bebidas às meninas para tirar proveito sexual, de masculinidade tóxica, de fazer pressão sobre os colegas para mostrar macheza, coragem.

Somos reflexo de uma sociedade patriarcal, onde homens e mulheres são instados/as a assumir papeis de gênero previamente estabelecidos. Nesse cenário, os meninos usufruem alguns privilégios e parece que o medo de perdê-los ou de que as meninas percebam como não naturais essas assimetrias aciona algum tipo de incômodo, que demonstraram de vários modos, entre gestos, caras e bocas, comentários em voz baixa, depois delatados pelas meninas. Estas, por sua vez, entre as caladas e as falantes, entre as enfáticas e as relutantes, ou aquelas que se limitavam a acenar positivamente com a cabeça, parece que houve uma percepção das consequências do machismo em nossas vidas, que incluem desde situações sutis nas relações diárias até estupro, morte, negações e privações diversas.

Mais uma vez, depois da conversa, estudantes queriam ainda falar do assunto. Um rapaz, para minha surpresa, chamou-me para perguntar se as mulheres teriam o direito de agir com violência com o homem, se a Lei Maria da Penha os protegeria. Conversamos sobre os números, a prevalência da violência contra a mulher, as coações, as possibilidades de defesa, as vulnerabilidades. Foi uma surpresa boa perceber que em meio àqueles garotos aparentemente tão distantes havia aqueles que queria saber mais, perguntar, ouvir. Outro se aproximou e continuamos a conversa a três, este segundo, afirmando que era muito injusto um homem agredir uma mulher e que se visse uma cena assim, sem dúvidas, ele defenderia, pois não existe essa de ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’. Essa conversa me despertou para perceber que outros meninos também tenham sido tocados pela conversa e evidentemente muitos conseguiam perceber as injustiças nas relações de gênero.

Na roda também discutimos sobre a multiplicidade de formas de ser mulher e as interseccionalidades que atravessam as experiências das mulheres negras, indígenas, pobres, lésbicas, trans. As meninas relataram seu incômodo e mostraram-se desejosas de conversar mais sobre o assunto. Avaliaram que os meninos estavam agoniados porque tocamos em atitudes que eles costumavam praticar e que, ao meu ver, não tinham, no momento, sensibilidade ou maturidade para autoavaliar-se criticamente. No relato de uma estudantes, um colega machista, racista e homofóbico tem prejudicado sua relação com a escola. Sobre este, em especifico, reclamações se acumulam desde anos anteriores, segundo professores/as nos ateliês de pesquisa

Além disso, as estudantes disseram ter várias situações para relatar, mas sentiram-se coagidas naquele momento na presença dos garotos. As meninas sugeriram que esses momentos poderiam ocorrer sem a presença masculina para que elas possam se abrir e falar de si sem medo ou constrangimentos. As narrativas das alunas mostraram um lado que para mim ainda estava nebuloso: muitos meninos percebem seus privilégios, não querem abrir mão em nome de uma igualdade que as mulheres pretendem. Alguns ostentam sua ‘macheza’ tóxica sob os aplausos dos demais, chegam a ser admirados e têm em sua órbita companheiros que compactuam com atitudes e discursos que pretendem reafirmar um espaço de poder masculino.

Obviamente, não se pode generalizar as atitudes dos meninos, alguns apenas ouviram, sem esboçar reações possíveis de serem decifradas naquele momento. Sabemos que há garotos que que não se orgulham das desigualdades geradas pelas questões de gênero, são sensíveis à discussão ou à causa antissexista, alguns inclusive sofrem com pressões em todos os espaços porque suas performances não se alinham à masculinidade hegemônica. Naturalmente, nem todos teriam coragem de se posicionar de modo diferente em público, ou veriam aquele como momento propício para relatar suas dores.

Avaliando essa experiência, sinto que houve tensionamentos tanto entre as alunas como alunos, de sair do lugar de conforto, silêncio ou de encontrar apoio para inquietações ou sentimentos de transgressão das relações de gênero ou raça. Como disse bell hooks (2017, p.60), “os alunos[as] podem não compreender de cara o valor de um certo ponto de vista ou de um processo”, assim, “leva tempo para que os alunos [e alunas] sintam esses desafios como positivos”. Por isso é importante manter ações sistemáticas, continuar buscando caminhos.

Fomos pensar, eu e algumas/alguns colegas o que estas reações pediam de nós. Há muito a refletir a este respeito: como continuar a regar essas pequenas sementes de ações antissexistas e antirracistas? Como ampliar essa discussão e abrir espaços para que essa e outras diferenças sejam problematizadas na escola? Será que para os alunos, ouvir as experiências de homens falando de seu machismo, de como perceberam e passaram a tentar desconstruir essas atitudes, seria uma ação possível? Para além de ouvir uma mulher com suas experiências, que muito se identificam com as das meninas, seria interessante também ouvir experiências que se identificam com os meninos? Como organizar um trabalho em grupos menores, na própria sala de aula, onde o ethos da confiança já foi estabelecido e o tema pode ser mais aprofundado?

Algo ficou bastante notório, em especial à tarde, que as meninas se empolgaram com a perspectiva de formar um grupo de mulheres para conversar, se apoiar, relatar experiências: há solo fértil para a luta antissexista na escola. Estas alunas já estão pensando possibilidades de organização para o grupo, de temas para debater, de músicas, filmes, séries, isso no mesmo dia da conversa. Pediram contato para falarmos pelo whatsapp, temos apoio da direção e de outra professora para tentar formar o grupo, que já estava sendo pensado por elas. Senti que estamos afinadas no desejo de intervir sobre essa realidade e que as meninas almejam por isso.

Se como diz Faulcoult (1988, p.91), “lá onde há poder, há resistência”, juntas e juntos podemos construir estratégias de fortalecimento e de luta contra os mecanismos opressivos que se configuram em atitudes diárias de machismo, como também de racismo, homofobia. As alunas mostraram que estão pensando estratégias de resistência e precisam de encorajamento paras seguir. A escola mostrou que está no mesmo caminho, em busca de alternativas. Ao contrário do que pareceu naquele primeiro momento, o incomodo existe, assim como um desejo latente de construir outras passagens e outras paisagens na escola. Mas não podemos deixar isso apenas no plano da latência. É preciso agir diante desse diagnóstico, que muitas/os profissionais da escola podem já ter percebido, mas que para mim somente agora está desnudado.

Vislumbrando novas paisagens, transgredindo o lugar da acomodação, imagino um dia em que nosso sonhado coletivo esteja em ação, acolhendo e apoiando meninas e mulheres; o dia em que homens mais experientes, professores ou não, tenham momentos com os meninos, mais confidenciais talvez, em que possam compartilhar como vivenciam as pressões da masculinidade tóxica, as formas como aprenderam a manifestar o machismo, mas também a buscar modos de desconstruir essas crenças enraizadas. Nesse dia, em meio a nossos saberes e não saberes, estaremos falando e combatendo também as outras diferenças no cotidiano na escola.

Enfim, amigas e amigos, quantas emoções pra um dia! Só posso agradecer pelo que vivi, pelo que aprendi, pelo que fui deslocada, desterritorializada. Agradecer à direção e coordenação da escola pelo convite, pela abertura, às professoras e professores pelas trocas, pela presença e pelas discussões pós-roda, pela sensibilidade e pela amizade, à minha querida amiga Carla Sá, que ouviu meu desabado ao chegar em casa, agoniada, inquieta, ajudou e ver outros ângulos da paisagem e ainda me convidou para compartilhar essa vivência em seu blog, que agora abre espaço para esta escrita diarizada. Às minhas deusas e deuses, energias do bem, às minhas ancestrais, que me guiam, me inspiram e me movem nesse rio de águas agitadas e, ao mesmo tempo, revigorantes. Ubuntu!!!

Notas


[1] O gênero carta é um escolha para comunicar minha pesquisa de mestrado, uma escrita que estou exercitando neste registro.

[2] Observação participante é um dispositivo utilizado na minha pesquisa de mestrado, no Programa Mestrado Profissional em Educação e Diversidade – MPED-UNEB. [3] Dispositivo de pesquisa realizado com os professores/as da escola, que integrou encontros formativos e autoformativos para discutir praticas pedagógicas com os temas raça e gênero.


Referências:


HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. Ed. São Paulo, 2013.

LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v.19, n2, p.04-27, jul./dez. 2011.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.


NOTA SOBRE A ESCRITORA:


Vaneza Oliveira de Souza.

Nascida no município de Iraquara, Bahia, mulher, negra, mãe, sertaneja, rural, nordestina, aguerrida, filha, irmã e amiga muito amada. Liberdade é como a vejo, força como a definiria e o que ela deseja, como diria Clarice, ainda não tem nem nome.

Graduada em Letras e Pedagogia.

Especialista em Neuropedagogia.

Mestranda Mestrado Profissional em Educação e Diversidade (MPED) - UNEB.

Atuações nas áreas de gestão escolar, gestão da política educacional no município de Iraquara-BA, professora da rede estadual de ensino no Colégio Estadual de Iraquara.






52 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
Post: Blog2_Post
bottom of page