As escritas de si como estratégia pedagógica para Educar para Liberdade
- Edicarla Correia de Sá
- 26 de jul. de 2020
- 10 min de leitura
Em meio a pandemia estamos criando encontro formativos, grupos de estudos e grupos de pesquisa, o plano de formação continuada da SEC-IAT; e, reuniões escolares também como estratégia de continuarmos na mobilização em torno da construção de conhecimentos para formação de professores, está sendo uma forma de mantermos o contato, o acolhimento entre nós, pensando estratégias para o retorno, como potencializar o ensino e aprendizagem dos alunos quando possível nossa volta para a escola.
Recentemente tivemos uma reunião entre gestão escolar, coordenação pedagógica e professores e professoras da escola em que trabalho, serviu não apenas para esclarecer e discutir protocolos, pensar neste retorno que em algum momento faremos. Mas também para acolhermos uns aos outros.
O relato de uma professora que disse que ao tentar gravar um vídeo para os alunos, não conseguiu porque chorava toda vez que iniciava o vídeo nos tocou; a situação que nos encontramos cria uma energia de angústia e ao mesmo tempo empatia, uma situação que muitas vezes nos paralisa, mas como professores sentimos também vontade de fazer mais, mesmo diante do medo e das incertezas.
Ontem, dia 24 de julho, nos encontramos para estudar o texto Falando em Línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo, por Glória Anzalduá, os professores e eu, um total de onze pessoas. No texto ela inicia com uma sua datação, como na escrita de um diário ou de uma carta, colocando o data em que foi escrita, como ela está naquele momento no ato da escrita, como imagina-nos, nós mulheres do terceiro mundo, ela fala sobre escrita, o processo da construção da escrita para nós mulheres, à escrita de si que emerge paralelo à outros movimentos, trabalho, estudo, criar os filhos, cuidar da casa, atenção o marido, e à escrita.
E como é difícil escrever, no processo de escrita de minha dissertação de mestrado, até chegar ao que estou construindo agora, neste caminho de finalização para à defesa, foi muito dolorido entender que escrever é dizer sobre mim, sobre o que acredito e sinto, as pessoas, coisas, o mundo, a si... E as pedagogias de afetamentos que pude vivenciar.
Glória fala dessa dificuldade, desse condicionamento que na escola, na acadêmia somos acometidos, essa tal escrita científica, como se fosse algo ‘de outro mundo’, algo tão difícil que chega a ser quase inalcançável, distante de nossa capacidade. Nada mais é do que a escrita do colonizador, o falar sobre ele, e não sobre nós, daí vem a dificuldade, desde as máscaras utilizadas para concretizar o projeto de colonização.
Quando descobrimos que podemos fazer ciência com o que temos, com o que somos, com os processos educativos que movimentam-se em nossas escolas, comunidades, descobrimos o poder teorizante que temos em nossas mãos, à partir das diversas narrativas, vivências, lugares e lugares de memória.
Glória nos mostra na carta um movimento de imersão na escrita, este movimento incorre para a libertação. Penso nos “perigos” que tornam-se em obstáculos que ela fala em seu texto. Nos perigos que estão postos quando uma mulher pobre, de cor, na roça, na periferia, quando ela começa a escrever. Para termos uma ideia disto, Angela Davis, nos alerta que “quando uma mulher negra se movimenta, toda uma estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Penso em Marielle Franco, quando ela questionava quantos pobres mais terão que morrer para que esta guerra acabe?
A carta continua, nos alerta em certo momento sobre as mulheres lésbicas, invisíveis na sociedade, se para uma mulher já é difícil alcançar o lugar que deseja diante dos obstáculos que são impostos, uma mulher trans, lésbica, esse obstáculo aumenta mais ainda. A expectativa de vida de mulheres trans no Brasil é de 35 anos. Uma mulher trans de 40 anos é considerada ‘idosa’, pois ultrapassa as expectativas sociais, ela está viva, de alguma forma ela ultrapassou os perigos, os obstáculos, ela resiste.
E é o que queremos fazer na escola pública, na educação básica, queremos que lá não seja o lugar onde NÃO morram os sonhos, onde pessoas e vozes NÃO sejam invisibilizadas e silenciadas, a escola deve ser o lugar onde todos nós encontramos força e coragem para ultrapassar as brechas do sistema.
Uma outra vez ouvi dessa mesma amiga, em outra conversa, uma mulher intelectual negra, ela me disse que não houve abolição no Brasil, as pessoas negras neste país criaram e continuar a criar processos e movimentos abolicionistas, e até hoje continuam a criar esses movimentos para a liberdade.
Quando alguém questiona manifestações, gritos de luta, “fogo nos racistas”, fogo no local de trabalho do homem que assassinou Jorge Floyd, sem ter machucado ninguém, é criar movimentos abolicionistas. Como queimavam casas grandes e plantações em protesto à liberdade e o direito à vida.
A educação deve ser este local onde se re-criam constantemente movimentos educativos para a liberdade, deslocamentos e afastamentos que permitem romper com os condicionamentos sociais, à crença na educação deve nascer na escola, eu acredito que este processo pode ser potencializado através da escrita, a escrita de si e dos outros, sobre nossas famílias, comunidades…
Por isso incentivo o uso do diário na escola, em especial para quando retornarmos. Além de incentivar a escrita autoral, o treinamento do ato de escrever, tomar consciência de si é um dos maiores poder que podemos ter em nossas mãos, pois empoderados de nossa capacidade, sonhos, possibilidades, podemos insistir em ultrapassar os obstáculos e as expectativas sociais.
“Porque os olhos brancos não querem nos conhecer, eles não se preocupam em aprender nossa língua, a língua que nos reflete, a nossa cultura, o nosso espírito. As escolas que freqüentamos, ou não freqüentamos, não nos ensinaram a escrever, nem nos deram a certeza de que estávamos corretas em usar nossa linguagem marcada pela classe e pela etnia.” (GLÓRIA ANZALDUÁ, 2000).
Muitas vezes eu ficava tímida na sala, o professor perguntava algo, eu pensava várias vezes, maquinava a resposta, eu tinha a resposta, eu sabia, mas algo me dizia que eu poderia estar errada, eu ensaiava na minha mente o que queria falar, mas a oportunidade passava e não dizia nada.
Compreendo esse sentimento ao ler Glória, esse sentimento de erro, de nó na garganta, o não falar, o silenciar-se. Sinceramente não lembro de minha voz na infância, não lembro de coisas que tenha dito, algo engraçado, divertido, algo inesperado, criativo, me lembro como observadora, calada.
Hoje na escrita da dissertação, com as leituras, escrever mais sobre mim aqui nesta plataforma, no Diário de uma pedagoga, aprendi a escrever minha dissertação, o texto ficou mais compreensível, eu o vejo e me identifico, eu aprendi mais sobre mim, o que quero, entendi minha visão que tenho do mundo e o que quero construir nele. A escrita cura, em todos os sentidos, faz você tomar de volta o que sempre foi seu.
Eu vejo na escola os alunos com dificuldades de escrever, ler, compreender os conteúdos, e vejo que eles sentem o que Glória sentiu no seu processo de escrita, esta artificialidade no ato da escrita. O fugir dela, recusar-se, ser tão difícil e doloroso colocar no papel o que sente. Vejo as máscaras. O professor pede um texto, uma redação, sobre um tema e muitos não conseguem escrever, a falta de identificação com a língua do colonizador.
Lembro da máscara, em Grada Kilomba, no capítulo do livro intitulado A máscara, ela fala deste instrumento utilizado na colonização para que as pessoas que foram escravizadas não contassem suas histórias, não falassem de si, seus parentes, sua comunidade, país, continente. É preciso retirar as máscaras invisíveis que nossos alunos ainda usam.
“Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever parece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar este ato — esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever? Como foi que me atrevi a tornar-me escritora enquanto me agachava nas plantações de tomate, curvando-me sob o sol escaldante, entorpecida numa letargia animal pelo calor, mãos inchadas e calejadas, inadequadas para segurar a pena?”(GLÓRIA ANZALDUÁ, 2000).
Até o momento não perguntei aos alunos se eles sentem-se que podem ser escritores. Se eles sentem que tem algo a contribuir, à ensinar.
Será que nossa resistência em lidar com o novo, em trabalhar com novas metodologias, ensinar nossas crianças e adolescentes à escrever sobre si, é algo que também nos foi condicionados? Seria isto, medo? Resquício de uma mente ainda colonizada? Que além do calar-se contribuir para que vozes ainda não esbraveje e reclamem de volta o que lhes foi tirado? Uma reprodução deste ato de “repelir” os movimentos de tomada de consciência que Walker fala ao ser citado por Glória?
“Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tão classe média quanto pudermos. Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena. Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte. Reverenciarmos o touro sagrado, a forma.”(Glória Anzadulá, 2000)
Identificação com o patriarcado, este ser homem para ser aceito no mundo masculino, se for uma boa mãe, é mãe-pai ou pãe. Se for uma boa motorista, é dirigir como homem, se for corajosa e valente, é mulher-macho. Ser o que não somos para sermos aceitas e valorizadas com nossas potencialidades e talentos.
Glória nos alerta que somos capazes de nos identificarmos com o agressor para sentirmos pertencentes ao mundo dele. Paulo Freire também nos ensinou que quando a educação falha, o desejo da mente e corpo colonizado é ser o opressor. Somos violentadas e violentados, e reagimos com violência, entretanto, nossa reação é considerada selvagem, crime digno de castigo. Mas a violência do opressor chega a ser benevolência.
“ESTÚPIDA, HISTÉRICA, PUTA PASSIVA, PERVERTIDA” (Glória Anzadulá, 2000)
É só mais uma das formas que o homem encontra para nos calar, nos colocar de volta ao nosso lugar. Que somos apenas um rótulo, um objeto. Quando uma mulher questiona o marido e ele replica com LOUCA, ESQUIZOFRÊNICA, ESTÁ IMAGINANDO, INVENTANDO COISAS, PSICOPATA, sinônimo de cale-se, volte ao seu lugar.
Estamos tomando ciência do que está acontecendo, mais uma mulher caiu do quinto andar, diz o jornal ao meio dia, suspeita-se que foi empurrada. Mas porque a notícia diz que ela “caiu”? Porque não diz ela foi supostamente vítima de feminicídio? Que o esposo está sendo investigado por isso? O “caiu” coloca em nosso subconsciente que de repente ela “arrumava a casa, escorregou e caiu” simples assim. “Louca”, “histérica”, “puta”, “cale a boca”, “psicopata”, “caiu da escada”, “caiu do quinto andar”.
Devemos insistir na escrita, insistir que ela vire rotina, naturalmente, em nossas casas, escolas, comunidades, grupos; escrever sobre si, sobre suas vidas, seus sentimentos, suas aprendizagens durante as aulas. “Devemos priorizar nossa própria escrita e a das mulheres do terceiro mundo” (Glória Anzalduá, 2000)
“Se você não se encontra no labirinto em que (nós) estamos, é muito difícil lhe explicar as horas do dia que não possuímos. Estas horas que não possuímos são as horas que se traduzem em estratégias de sobrevivência e dinheiro. E quando uma dessas horas é tirada, isto significa não uma hora em que não iremos deitar e olhar para o teto, nem uma hora em que não conversaremos com um amigo. Para mim isto significa um pedaço de pão.” (Luisah Teish citado por Glória Anzalduá, 2000).
Nossos alunos na zona rural, muitos saem do trabalho direto para a escola, no turno noturno, na EJA, os alunos já trabalharam, cuidaram da casa, dos filhos, de seus demais afazeres antes de ir à escola. Devemos valorizar suas escritas, pedir que escrevam cada vez mais. Que encontrem-se no lugar de intelectual, de teórico, de cura, de potência. Insistir na possibilidade de tomada de consciência e deste poder por eles.
“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também.” (Glória Anzalduá, 2000)
Faço de suas palavras as minhas Glória, encontrei cura na escrita, encontrei motivos para cada vez mais escrever sobre mim, creio fazer teoria, creio que hoje posso me chamar de escritora, algo que até outro dia duvidava disso, não me atrevia a dizer “sou escritora”.
E hoje ao falar, vejo que existem olhares que ainda duvidam, ridicularizam, não compreendem, mas insisto, sinto que uno minha voz às de tantas pessoas, e nossas vozes podem vibrar e ecoar até que entendam de uma vez que não haverá mais oportunidades para que nos calem outra vez, porque juntas, juntos, vibraremos nossas vozes cada vez mais alto.
Crio esperança, dou voz ao meu nó na garganta, dou visibilidade as minhas lágrimas, crio teoria, dou vida à mim por mais uma vez. Dou vida à minha voz que foi tantas vezes calada, as verdades que muitos recusam ouvir, recusam negar. Registro minha história para que o “não” a violência que não conseguir em alguns momentos de minha vida, seja agora dito todos os dias. Para que você me conheça pelo que tenho à dizer, não pelo que contaram a você sobre mim. Para me descobrir, resistir, sobreviver e viver.
“Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever.” (Glória Anzalduá, 2000).
Quero que você escreva junto comigo, que possamos levar esta pedagogia de escrita para a liberdade para nossas vidas, salas de aula, escolas, que cada um possa acreditar que o que tem à dizer é importante, que sintam-se parte de um todo, parte de um nós, e não um mero ‘outro’, que sinta o que tem dentro si, este poder que é capaz de mudar estruturas, romper os obstáculos impostos, e construir uma nova sociedade, um novo mundo.
Busquemos umas nas outras, uns nos outros, se convide à escrever sobre si diariamente, convide a todos a contarem suas histórias, há poder nisto, deslocamentos e aproximações potentes que emergem na pedagogia dos afetos construindo uma educação para a liberdade. Anti a colonização que nos aprisiona. A escrita é capaz de romper com os exílios, segredos e mistérios que nos calam, nos prendem, que estão em torno de nossas vivências, de nossas experiências. A escrita cria as linhas e as brechas para ultrapassarmos os obstáculos que nos deixam inertes. Neste desnudar-se inteiramente, para nos vestir de paixão, cores, amores, vidas. E por fim...
“O que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras” (Glória Anzalduá, 2000)
Referência:
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Publicado originalmente em: Rev. ESTUDOS FEMINISTAS, 2000.
(O texto pode ser encontrado em pdf na internet).
Sobre Gloria Anzalduá - filha de camponeses do sul do Texas, que tiveram suas famílias separadas por uma fronteira imposta, Anzaldúa fazia da leitura o descanso de suas jornadas de trabalho nas plantações. Ativista desde jovem, nos anos 1950 participou dos protestos de camponeses do sul do Texas. No fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, teve contato com a literatura feminista, mas é nos anos 1970 que inicia sua produção literária, quando escreve peças de teatro, poemas, contos, romances e autobiografias. No começo dos anos 1980 defende a posição de que as mulheres de cor deveriam buscar meios para expressar suas idéias, transformando-se em criadoras de suas teorias e não mais em meros objetos de estudo. Publicamos este ensaio, inédito em português, em homenagem aos vinte anos da antologia This bridge called my back (MORAGA & ANZALDÚA, 1981) que foi uma das referências obrigatórias nos debates sobre diferença dentro do feminismo norte-americano dos anos 1980.

Comments