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As aprendências do ‘fique em casa’


Texto escrito por:

Vaneza Oliveira de Souza


Graduada em Letras e Pedagogia

Especialista em Neuropedagogia

Mestranda Mestrado Profissional em Educação e Diversidade (MPED) - UNEB



Fique em casa! Esta é a recomendação para o mundo neste momento. A casa, mais do que nunca, tornou-se nosso abrigo, nossa melhor proteção. Daqui, da minha casa, que é também meu casulo, de onde tenho passado tempo maturando as ideias pra tentar compreender tudo isso, sem surtar, tento aproveitar alguns momentos na busca do autoconhecimento e autocuidado. Isto não é egoísta porque nós, mulheres, sempre fomos socializadas para cuidar do outro, em especial as mulheres negras, que historicamente estão nesse tipo de ocupação (ou exploração).

Antes disso, tudo era correria: trabalho, pesquisa, família, tarefas mil... Uma rotina entupida de coisas que nem sei qual o sentido. Outras, ganharam muito mais significado. Quando fomos surpreendidas/os por esse vírus que, de repente, afetou o mundo inteiro, muitas coisas aparentemente muito importantes tornaram-se secundárias diante da necessidade de nos unirmos pela vida. Daqui em diante, seguiram e seguem muitas aprendências, como diria Conceição Evaristo.

E pensar que nossa sobrevivência depende das ações de cada pessoa deste planeta, dos/as mais poderosos/as governantes às pessoas mais simples de todos os continentes! Um tsunami de escala global nos abala física e emocionalmente, e fez tudo mudar. O individualismo não tem muito lugar, ou nos unimos pela prevenção e cuidado ou morreremos muitos de nós, em especial nos lugares mais pobres onde o atendimento médico já é precário ‘por vida’.

Uma coisa parece certa, os modos de viver individualista e egoísta produzidos pelo capitalismo branco cisherteropatriarcal (AKOTIRENE, 2019) não dá conta de resolver os efeitos do tal vírus, que já é uma tragédia global. Enquanto o mundo aprende a duras penas e perdas de muitas vidas como os seres humanos são uma comunidade global, interdependente, no sentido mais estrito da palavra, somos insistentememte interpeladas/os a questionar o modo de vida “imposto pelo hipercapitalismo” (SANTOS, 2020). Ficar em casa, ter mais tempo livre, tempo para os/as filhos/as, para ler um livro, reduzir o consumo, desacelerar, ser embalada/o pelo canto dos pássaros, ouvir a água seguir seu fluxo num rio, contemplar o céu, a noite, cuidar umas/uns das/os outras/os, distanciar para proteger, passaram de alternativas inviáveis para necessidades ou possibilidades bem reais, às vezes obrigatórias.

Embora a princípio para nós, brasileiras/os, a pandemia tenha atingido, em sua maioria, pessoas de maior poder aquisitivo, viajantes internacionais, a contaminação comunitária não está escolhendo pelo bolso. Ainda assim, não há como afirmar que todos/as são igualmente afetados, pois as mesmas condições que nos oprimem – raça, classe, gênero, e, nesse caso, mais fortemente geração - quando se entrecruzam tornam as possibilidades de isolamento social e atendimento médico mais difíceis. Como deixar o trabalho se é preciso ganhar o sustento diário e não há reserva financeira? Como manter isolamento social amontoados em favelas, bairros periféricos ou casas onde mal cabem os/as moradores/as? Como manter as condições de higiene em lugares sem água encanada, sem dinheiro para o álcool gel? Como manter as crianças pequenas em casa, sem trabalho e sem sustento? Ou se arriscar nas casas/empresas dos/as patrões/patroas ou nos subempregos? E que dizer da empregada doméstica que morreu depois de ser infectada pelos patrões que voltaram de viagem internacional e não a dispensaram durante o tratamento? E os/as idosos/as que moram com netos/as ou nas casas de repouso? Imigrantes, pessoas em situação de rua e tantas outras especificidades. Onde seremos atendidas/os em caso de contaminação em massa? Nos PSFs das comunidades rurais ou áreas periféricas das grandes cidades, quase sem infraestrutura? Nos hospitais já superlotados e carentes de muitos matérias e equipamentos? E esses testes em quantidades insuficientes? Os dados são confiáveis? E os/as profissionais de saúde expostos/as ao risco de morte, ao desgaste físico e emocional, e algumas vezes à falta de material de proteção? Como diria Luna, são tantas perguntas!!!

Boaventura de Sousa Santos (2019), falando da pedagogia do vírus, traz a teoria que nós vivemos na carne: “a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados”. Aqueles/as vulnerabilizados/as pelas injustiças sociais, são também os mais propensos a perder a vida pela precarização dos serviços públicos de saúde e pelas possibilidades reduzidas de prevenção. Enfim, nas avenidas onde se interseccionam raça, gênero e classe, pessoas pobres, negros/as são atropelados/as e morrem, sem grandes comoções ou apelo midiático. Assim, estamos vendo nos EUA, nos países africanos e na América Latina.

No Brasil, assistimos ainda à revoltante falta de responsabilidade, a perversidade capitalista de governantes, como o presidente da república, que vem demonstrando total prioridade dos aspectos econômicos, contrariando todos os esforços pela quarentena. Não estão dispostos a emprenhar esforços para minimizar mortes, as vidas parecem ter pouco ou nenhum valor para quem coloca os interesses do mercado a cima de tudo.

O saldo da pandemia, até agora, não é possível dimensionar. Só sabemos que são milhares de pessoas mortas, infectadas, desempregadas, órfãs, sofrendo violências e privações, saúde física e mental sob ameaça. Como tudo tem seu lado bom, a natureza está respirando mais aliviada e nós, que tentamos nos proteger em casa, temos a oportunidade de nos conhecer melhor e aos nossos/as companheiros/as de lar, que de tão pouco que víamos, eram praticamente estranhos no ninho. Uma bela oportunidade para aguçar nossos sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir coisas que a correria da rotina não permitiam, estreitar laços. Sem exploração, vale lembrar!! As mulheres não querem nem merecem sobrecarga, e nós mulheres negras, não aceitamos esse lugar de “burro de carga” (COLLINS, 2019).

Entre perdas e ganhos seguimos na reflexão: até que ponto seremos capazes de seguir ignorando os avisos que a natureza nos traz, em função da ganância, da exploração irresponsável dos recursos, da busca desenfreada por poder e dinheiro. A vida é um devir, um caminho em que não sabemos o que iremos encontrar à frente, as curvas, os obstáculos, os atalhos, as passagens, as encruzilhadas que nos confrontam com novas situações. Nossos tempos, nossos interesses não os únicos que prevalecem. Nessa roda, a lei do retorno é implacável.

Estamos em modo de pausa, aguardando as novas configurações da paisagem, sabendo que “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”. Haverá mudanças de dentro para fora e de fora para dentro, em nós, nas instituições, nas relações, pelo menos é isso o que se espera. Mais valor às pessoas, menos às coisas, mais valor à vida e ao bem estar comum, menos individualismo. E nesse contexto, as diferenças parecem, ao menos aos meus olhos, perder muito mais a força de gerar preconceitos e desigualdades. Um vírus parece ter nos ensinado, ao menos aos que têm alguma sensibilidade, que gênero, raça, classe, geração, idade, nacionalidade, regionalidade, sexualidades, deficiências, padrões físicos não têm nenhum tipo de valor diante da ameaça sobre a vida.

Quando retomarmos a “normalidade”, teremos (espero) aprendido uma lição pela extrema dor – porque a dor já estávamos vivenciando ao ver os números do feminicídio, das violências, dos genocídios, das exclusões, da destruição do planeta, das catástrofes naturais, da fome, do desemprego, de todas as formas de injustiça, exploração e sofrimentos produzidos pelas mãos humanas – não somos o centro do planeta e nem os únicos habitantes, somos um todo que precisa de harmonia para equilibrar a polifonia da vida e das relações.

O que podemos, por ora, é ficar no nosso lugar de proteção, cuidar uns/umas dos/as outros/as e de nós mesmas/os, física e emocionalmente, nas aprendências dessa grande lição do universo.




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