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A QUESTÃO DO CUIDAR

“Que quer dizer cativar?” “É uma coisa muito esquecida” – disse a raposa. “Significa criar laços.” Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe.



Esta manhã uma amiga muito querida, me disse que poderia me ajudar no site, a melhorar seu uso e funções, para que fique mais acessível e intuitivo para utilizá-lo em outros aparelhos além do computador, como celular ou tablet. Tão generosa a atitude dela.

Mais tarde li um texto de Laurinda Ramalho de Almeida sobre ‘o cuidar’, eu aprendi com ela que minha amiga estava cuidando de mim com sua atitude. A felicidade que senti pela atenção e generosidade dela, foram expressões de cuidado, ser cuidada passa pelo sentimento de afectar a si e ao outro, esse carinho na alma que nos faz sentir-nos amados.

Ela sentiu-se afeta pela leitura do texto, anteriormente publicado a este aqui no Diário de uma Pedagoga, e afetou-me com sua reciprocidade em ajudar na facilitação do uso do blog para celulares. No texto de Laurinda Ramalho de Almeida (2012) ela cita O Pequeno Príncipe, não me dei conta, mas a aventura do pequeno garoto perpassou pelo aprendizado sobre ‘o cuidar’, ele em seu pequeno planeta, cuidava de si, varria o chão, limpava os vulcões, e ao brotar do chão um rosa, ele a cuidou, sentiu-se responsável por ela; a rosa não poderia se regar sozinha, necessitava dialogar com o Príncipe, e ele aprendeu que não poderia, nunca mais, viver sozinho; somos pessoas quando dividimos com o outro afetos, aprendizados num movimento de reciprocidade e generosidade verdadeiras. Ele era responsável de si e de mais alguém a partir daquele momento, e impeliu-se a viajar pelo universo para aprofundar sobre esse sentir, cuidar, e amar.

“Responsável, em sua etimologia (do latim respondere), implica dar uma respostas, estabelecer uma relação” (Laurinda R. Almeida). Somos responsáveis quando estabelecemos um elo, cuidar de si é permitir-se navegar pelo auto-conhecimento de um único universo cheios de mundos diferentes, que é o eu de cada um. Viajar pela experiências pessoais, pelas feridas e sorrisos, memórias que não se formam sozinhas, mas sim com o outro.

A autora continua a nos dizer que somos geneticamente sociais, “uma necessidade íntima” (Wallon, 1986 APUD Laurinda R. Almeida, 2012). Se necessidade é, portanto, vital, ao ponto de que só nos tornamos homens e mulheres neste estar com o outro, com o mundo.

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, disse a raposa ao Pequeno Príncipe. Ensinamento que pode assustar os indispostos ou os que não compreendem por completo essa mensagem. Por um tempo me olhei diante do espelho e não gostava do que via, aprendi com o tempo cativar a mim; foi um processo de aprendizado, de auto-cuidado, e esta ação é diária e sempre, preciso repetir este amor, este afeto diariamente, sempre cativa pelo meu interior, me impulsiona a amar-me cada vez mais. Ah e esse amor, aprendemos a amar, não nascemos sabendo o que ele é, de onde parte, como começa, ou como utilizá-lo em nosso trabalho, nossa rotina.

Aprendemos a amar, aprendemos a ser responsáveis pelo que cativamos. Está conectado. Pensar que posso ser responsável pela experiência que ofereço ao outro me faz imaginar que posso não controlar como tratarão a mim, mas posso pensar em como reagirei diante do que me acomete.

Nem sempre irão nos tratar com gentileza, nem sempre nos aceitarão, poderão ver teu jeito único de ser como excêntrico demais para pertencer ao rol de ‘amigos’. Mas você, antes de mais nada, foi responsável por si, por viver sua verdade, dar amor, sinceridade, e acredite - que receberá reciprocidade de outros tantos que também buscam viver suas verdades, e assim entender que o amor ultrapassa a forma pela qual enxergamos a vida, as coisas; o amor é mais profundo, ultrapassa as capas e veem o coração.

Agora fez sentido o que a raposa disse “o essencial é invisível ao olhos”, é difícil ver o amor, ver o cuidado, mas não impossível, o vemos na amiga que nota as nossas necessidades e se põem a atender. Está na mãe que corre para amparar seu filho; está nos ensinamentos dos professores com seus alunos, ao observar que este está cabisbaixo, com um comportamento diferente, o busca, o escuta de forma sensível; está na vivência entre mulheres que nunca se viram antes e viajam juntas para encontrar uma na outra aquilo que sobrava em si próprias, mas até então não tinha percebido, era o amor.

“Então, se somos geneticamente sociais, constituímos-nos pessoas pelo cuidar do outro. Nesse processo, passamos a abrigar em nós, a internalizar, o outro – que não é um, são muitos, representantes do nosso entorno cultural”, Laurinda R. Almeida nos diz, assim como Freire, Bell Hooks e o provérbio africano, que ‘eu sou porque nós somos’, ‘eu radicalizo meu eu no encontro com o outro’. A relação do cuidar envolve criar laços, sejam curtos ou duradouros, mas devem ser verdadeiros, pois é nessa relação eu-outro que desenvolvemos nosso eu mais íntimo, persona, nos aculturamos, aprendemos, acumulamos lembranças, emoções e histórias a partir desse compartilhar de vida com o outro, onde a minha vida, não apenas apenas uma construção individual, e sim social, ou seja, eu sou um coletivo, se permito-me ver assim, entenderei que sou responsável não apenas por mim, mas por todos que entrecruzaram meus caminhos. Cada um de nós é um universo a ser compartilhado, exige portanto ação, disponibilidade.

Quando aprendemos que amar ultrapassa as relações familiares e amorosas, que este verbo empreende ação, que exige de nós reponsabilidade por viver em verdade consigo e com o outro, verdade que passa pelo cuidado, e, portanto, pelo afeto.

Necessitamos desta reciprocidade de cuidado, afeto, amor; Laurinda R. Almeida (2012) diz que podemos chamar isto de empatia. A palavra empatia tem a sua origem no grego – empatheia, que significa tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas, vivenciadas por outra pessoa. Sentir o que o outro senti, sem sair de si, mas um encontro de diversos. Pois como diz Paulo Freire, eu encontro e radicalizo meu eu mais íntimo e profundo no encontro com o outro, numa mutualidade de afetos que perpassa além de sentimento, a crítica, especialmente, pois é nela que encontramos liberdade. Vê: reciprocidade – amor – afeto – crítica = amor como prática de liberdade.

As ações do cuidar, na relação pedagógica, se diferem em lugar, pessoa e estágios de desenvolvimento dos/as alunos/as. Quando professora de educação infantil, o cuidar ia além do ensino dos conteúdos, o ensino transpassava o brincar, e isto envolve permitir-se também sentir a brincadeira, conduzi-la, oferecer o colo quando a criança chora ou está insegura, o abraço na chegada e na saída, ou só porque ela simplesmente quer um abraço, “cadê o beijo da pró?”.

Ao chegar no Ensino Médio tudo mudou, lhe dar com adultos, às vezes ariscos, nem sempre dispostos a amar, cansados pela rotina puxada do ser professor, pela burocracia e promessas não cumpridas, esperam ser compreendidos, pedem de você comportamentos que não são de sua rotina. Lembro que numa situação um tanto injusta, uma professora se chateou comigo por eu não ter tido um comportamento mais incisivo, mais radical, me mantive mais cautelosa, tive vontade de dizer a ela naquele momento, quando um aluno seu erra, você briga com ele? Tem atitudes radicais, ou planeja intervenções?

O lugar, em especial, de ensino e aprendizagem para o/a professor/a é a sala de aula. Para a/o coordenadora/o pedagógica/o são todos os espaços da escola, o tempo inteiro temos que estar vigilantes a isso, nosso comportamento deve ser pedagógico o tempo inteiro, a crítica e o afeto, o coração e a mente abertos devem estar presentes o tempo inteiro.

O chão da escola é conflituoso, e por isso muitas vezes tão cansativo, e muitas vezes, se não tivermos cuidado, podemos destruímos os sonhos de alguém. Aprendi neste ano na função de coordenadora pedagógica a resiliência crítica, não esperar por esperar e deixar que as coisas aconteçam, pensar em intervenções que podem gerar resultados cada vez mais significativos, dentro do que acreditamos sobre uma educação como prática de liberdade. Naquele momento a professora ficou chateada comigo, ela falava alto, ameaça criar situações, relatava seu desapontamento sobre o fato ocorrido, talvez ela ainda não entenda o porquê do meu comportamento; sei que estou aprendendo.

Cuidar também é permitir que o outro encontre seu caminho. Temos que ter tato, como um artesão, que pacientemente trabalha na sua arte, a coordenadora pedagógica espera para que no momento mais oportuno ensine, mas antes do resultado da obra, o barro foi mexido, amassado, cortado e dado a ele contorno e forma. Caso contrário, corre o risco de afastar as pessoas, assustá-las, elas podem fechar-se completamente.

É preciso, assim como cuidar de uma rosa, ter cautela, ter tato, porque se não podemos nos machucar com os seus espinhos, o cuidar exige de nós paciência, sinceridade, gentiliza, amor e crítica. E assim poderemos vê-la florescer.

A relação na escola deve ser especializada e intencional. Do primeiro dia que cheguei ao Colégio Cecentino Pereira Maia, em Filadélfia, sertão da Bahia, aprendi e acredito que também ensinei, vejo avanços tanto nos alunos e alunas quanto nos professores, reflexos do cuidar.

Quando vou para a escola ostentando meus cachos, numa escola de alunas de maioria parda e negra de cabelos cacheados e crespos que prendiam e escondiam seus cachos, alisavam seus cabelos, e no final do ano poder ver todos aqueles cabelos blacks soltos, extravasando beleza e segurança, isso é cuidado creio. O corpo fala, e podemos permitir que ele também fale ‘cuidado’. Ouvi também nessa época (perto do final do ano), uma professora dizer “assumir-se negra é uma coisa, mas usar o cabelo daquele jeito, naquela altura? É outra”.

Temos muito a caminhar, a arte de aprender requer paciência, como dizem, ninguém anda da noite para o dia, muitas quedas até alcançar o equilíbrio do corpo para atender o que a mente pede dele. Assim também é ser coordenadora pedagógica, exige resiliência diária, porque não podemos perder ou desistir de nenhum/a ‘aluno/a’. Nossos colegas adultos, professores/as buscam de nós esse “novo”, mesmo resistindo ao diferente, medo de perder algo interiormente, aquele conforto no que já é conhecido a muito tempo.

Através da pesquisa, crítica e formação podemos desenvolver-nos como pessoa e profissionais da educação. Envolve comprometimento, disponibilidade, resiliência, afetar, sentir, amar, cativar... E estas questões reverberam o cuidar, o amor que construímos no nosso fazer profissional na rotina da escola.

O cuidado com os conhecimentos já produzidos, com a cultura e diversidade de cada pessoa, o cuidado com a didática e a forma. Na criação de projetos pedagógicos éticos, que traçam projetos de vida, sonhos e expectativas de futuro, cuidado de si e com o outro. Quando nos disponibilizamos a amar, no sentido mais íntimo da palavra, temos o cuidado de trazer a crítica para cada momento de ensino e aprendizagem que criamos na escola, para que possamos desenvolver a si e ao outro. Se falhamos no cuidar o/a aluno/a ou o/a professor/a não fica, porque não é visto, atendido, afetado. Ele/ela evadem.

A evasão pode ser vista mais do que abandono da escola, podemos vê-la como ação mais extrema de verbalizar a necessidade de ser cuidado pelo outro. Vale para todos, não ficamos onde não somos amados, onde não somos aceitos ou cuidados, cativados.

Imaginem chegar em uma festa e ao entrar no salão, todos olharem com um olhar de que não aceitam você, que não querem você ali ou não se importam com você, ninguém responde seu boa noite, ignoram suas tentativas de socialização. Assim também na escola, o/a professor/a na relação interpessoal com a coordenadora pedagógica, ele/ela evadi aos momentos formativos se não abrimos espaços para que eles sejam vistos e ouvidos, que sintam-se acolhidos e compreendidos e assim toda nossa intencionalidade de trabalho cai por terra. E isto pode repetir-se na sala de aula.

O/a professor/a precisa pensar nos procedimentos, da didática aos recursos que irá utilizar para criar um ambiente propício para a construção do conhecimento na sala de aula. Nesta relação interpessoal, aluno/a-professor/a, transpassam medos, inseguranças, relatos de dor, violência, abusos, tristeza, mas também alegrias, afetos, paqueras, a descoberta de novas emoções. Mas para isso acontecer, é preciso disponibilidade.

A sala de aula é atravessada pelas relações tanto de conhecimento quanto interpessoais. Cada aluna/o senti necessidade de ser cuidado em igual importância com relação a cada sujeito que está ali. Ás vezes caímos no comodismo de dar mais atenção aqueles alunos que estão sentados nas primeiras cadeiras que estão mais atentos aos conteúdos e tiram as maiores notas.

Porém somos professores de uma turma de 30, 35 ou 40 alunos/as e não de 5 ou 10 que sentam nas primeiras carteiras. Cuidar, amar, afetar exige também ética, ou estaremos fazendo o contrário daquilo que nos propomos ao exercer a nossa profissão. Nos iludindo com a ideia de que “faço o que posso”, o que está literalmente ao alcance.

A coordenadora pedagógica precisa estabelecer uma relação horizontal e de confiança com os professores para criar o ambiente para a formação escolar. Assim também na sala de aula, tudo acordado, conversado, ter objetivos e ações articuladoras e transformadoras. Assim como o professor é formador na sala de aula, a coordenadora pedagógica é também formadora em todos os espaços da escola.

“Lembrando mais uma vez a raposa: somente quando sou cativado pela proposta, fico responsável por ela, isto é, dou respostas, a partir das relações que estabeleço”. (Laurinda R. Almeida).

Se nós professores/as e coordenadores/as pedagógicos/as não atentamos para o cuidar de objetivos que possam ser alcançados pelos alunos/as (relação aluno/a-professor/a) e professores/as (relação professor/a-coordenador/a pedagógico/a) ocorrerá um ferimento na auto-estima do sujeito, seja no ego ou no mais íntimo, onde já está ferido. E ele/a se afastará de nós, construiremos muros onde deveríamos ver surgir pontes.

Fazer-se próximo exige habilidade e disponibilidade. Se é preciso habilidade para captar o que acontece na sala de aula, o/a coordenador/a pedagógico/a necessita de disponibilidade para percorrer os ambientes formativos da escola, o pátio, a sala de aula, o grêmio estudantil, os/as líderes de classe, os momentos de formação com os professores, todos. A habilidade de construir uma relação interpessoal, ética e comprometida também com a gestão escolar.

Afetar passar pelo ser, sentir e tocar. Somos este universo que necessita de cuidado e também de cuidar. Não apenas respondemos aos sentimentos, lançamos as questões, para que no diálogo possa nascer a radicalização crítica de si e do outro.

No início do exercer da profissão, coordenação pedagógica, me senti insegura, pois era tudo diferente, a formação continuada foi um divisor de águas; a formação e a pesquisa tornaram-se estratégias fundamentais e cotidianas em meu fazer. Aprendi que são nas relações horizontais e dialógicas que colhemos bons projetos e ações; sem julgamentos, sem querer diagnosticar para rotular, apreciar para avaliar, apenas a arte de sentir, ouvir, tocar, esclarecer, responder; e criar colaborativamente ambientes propícios para pedagogias significativas e afetivas.

A “educação um caso pessoal, um colóquio singular e intermitente [...]. Conscientemente ou não, realiza-se em contato, trocam-se sinais, atitudes e palavras. Os diálogos do espírito são furtivos como os do amor, mas tão decisivos como eles” (Gustavo Gurdof, Professores para quê? APUD Laurinda R. Almeida, 2012). Amar está intrínseco a este dialogar, em que há um falante, um ouvinte, ambos ensinam e aprendem, a crítica precisa ser o fio que tece a lã do conhecimentos, tessitura de afetos e aprendizados que medeiam o nascer de novos eus e outros, onde eu estando nele, e ele em mim, estamos responsáveis e cativos um pelo outro. Constituindo humanidade em comunidade.

Bell Hooks chama isto de entusiasmo, Paulo Freire de boniteza. O que seria de um casal ou um profissional sem a paixão, até porque as duas formas e lugares de ser gente com o mundo passa por disponibilizar-se a confiar, cuidar e permitir-se ser cuidado, amar e ser amado.

Parecem coisas simples, mas tornam-se complexas porque tratam do ser, despir-se de amarras e máscaras que nos prendem e condicionam nossas mentes, nossos corpos. É preciso lutar e enfrentar os conflitos, ser imaginativo, criativo e estar disposto. Posso parecer positiva demais para você, esperançosa demais, ou até mesmo utópica, porém sem amar, sem sonhar tão pouco avançaria. Eduardo Galeano, citado por Laurinda R. Almeida, fala sobre a utopia, ouso finalizar meu texto com a citação de Galeano (Apud Laurinda R. Almeida, 2012) e mais uma frase do livro de Antonie de Saint Exupéry:


“Ela está no horizonte [...]. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar?”


"Foi o tempo que dedicastes à tua rosa que a fez tão importante" (O pequeno príncipe), eu digo, foi o tempo que um dedicou ao outro, que radicalizou-os no mais íntimo de si. Eu sou porque nós somos.




REFERÊNCIA


ALMEIDA, Laurinda Ramalho; SOUZA, Vera Maria Nigro. O coordenador pedagógico e as questões da contemporaneidade. 6. ed. SP: Edições Loiola, 2012.


laurinda@pucsp.br




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