top of page

A escrita autoral como potencial criativo para construção de novas teorias

O uso do diário como dispositivo autoral-criativo para uma pedagogia transformadora



Eu reinventei à escola para mim... O lugar, seu significado e simbologia, porque estava machucada e coloquei nela todas as minhas intenções de mudança social, cultural, econômica, em todos os sentidos, quando se passa por uma situação de violência em que não observa saídas imediatas ao seu redor você as cria, pode ser extinto de sobrevivência, pode ser esperança. Adulta quando revive meu trauma, outra idade, lugar, agressor, imaginei que havia ‘nadado e morrido na praia’. Senti cansaço. Entrei em profunda tristeza porque via planos tão bem traçados e almejados, buscados como fosse alguém procurando uma fonte de água em meio ao deserto. Me perdi.

Um bom amigo que já não está entre nós, neste plano físico, incentivou a me inscrever no programa de mestrado profissional de duas universidades públicas, uma federal e uma estadual, mal alimentada, fraca, com mais pensamentos de morte do que de vida (sim, estava depressiva e estou em tratamento) sem muitas expectativas fiz as seleções, passei nas duas. Foi mais que uma aprovação, foi como se aquele credo antigo na escola houvesse se renovado, aquele compromisso com a educação que fiz quando criança ainda não tivesse sido cobrado e que ainda havia algo se fazer, uma caminho a percorrer, está envolvida neste processo o sentimento era de proteção e realmente, de renovação, cresceria e me desenvolveria da melhor forma, e poderia contribuir com outras pessoas a encontrar as suas saídas e vê a educação como ainda à melhor porta.

Aquele amigo que talvez não soubesse naquele dia o quão sua ação contribuiu para me salvar, nossa ligação é tão especial e profunda que pôde me ajudar mesmo sem compreender as feridas que carregava. Sua doçura, sua luta e companhia estarão vivas, tomo emprestado suas palavras que foram dirigidas à mim, em meio à uma conquista sua, mesmo que não veja mais teu rosto, ainda ouço tua voz em meu coração, numa solidariedade que transpassa as fronteiras da ciência e do entendimento lógico - “por onde for quero ser seu par”.

A escrita cruzou meu caminho neste processo educativo, enquanto indivíduo, aluna e agora professora-pesquisadora, ao me dedicar aos estudos na infância, passei a ler mais, comecei com poemas, poesias, fui para os contos, novelas e finalmente os clássicos nacionais e internacionais. Minha mãe professora de escola pública facilitava o acesso aos livros, eu vivia dentro da escola, nas manhãs no meu turno de estudos formal, nas tardes lendo os livros do ‘cantinho de leitura’, assim que terminava um livro começava outro.

Ganhei um pequeno Diário como presente de minha madrinha de batismo religioso. Neste diário comecei a escrever minha rotina, meus sentimentos, meus traumas, e o escondia, o considerava um amigo e ninguém poderia ler, aliás, o que estava escrito nele, era algo que comumente se tornou um segredo acordado silenciosamente por todos da minha família, da minha comunidade, esta por sua vez, mais cheia de segredos do que podemos perceber nas entrelinhas, um acordo que todos fingiam não ver, não saber, e assim, quem sabe, não sentir.

Hoje em conversas com amigas da minha comunidade, um dia atípico, falamos de nossas infâncias e sobre como o abuso e estupro esteve e está presente nas comunidades rurais, e como ainda é um assunto tratado como segredo, estávamos em quatro, e todas tinham experiências de violência para serem contadas. Lembranças que deveriam ser apagadas, esquecidas, mas que se desenrolou em muitos comportamentos nada sadios em momentos de nossas vidas, citamos outras meninas, hoje mulheres, que tiveram vivencias parecidas, e de meninas que ainda estão em situação de risco, o corpo continua em segredo.

Quando nossa experiência educativa está ligada a processos de autorecuperação, de libertação, seja individual, seja coletiva,não existe distanciamentos entre teoria e prática, há um elo que afirma a educação como real prática de liberdade, em última análise, um processo de solidariedade, reciprocidade, uma com a outra.

O diário foi o meu primeiro contato com a escrita como forma de cura, a construção de palavras que se derramavam e espalhavam-se pelo papel, no primeiro momento só algo pessoal e secreto, mas de igual importância para a fase de crescimento em vivia. Os diários foram evoluindo no campo da educação e da pesquisa, cientistas, antropólogos não desapegavam deste dispositivo para registrar suas compreensões de mundo e das realidades com as quais tinham contato para estudo aprofundado, para registro de viagens e “descobertas”.

O termo diário vem do latim diarium. Como substantivo masculino: “ 1. Caderno utilizado para registrar os acontecimentos de cada dia (na vida de uma pessoa). 2. Periódico que tem publicações todos os dias; jornal. 3. Numa instituição, empresa, profissão etc., registro ou listagem dos acontecimentos do dia a dia: diário de viagem. 4. [Popular] O que se gasta por dia: despesa diária”. ( https://www.dicio.com.br/diario/ ). No contexto acadêmico o conceito vai além, sua renovação sai do papel e vai para as telas e plataformas digitais. O diário se torna virtual e sua importância se amplia como dispositivo de construção de conhecimentos mais aprofundados para a educação.

A escrita de um diário na escola pública pode ser essencial no desenvolvimento da escrita autoral, de forma ensaística alunos e alunas podem iniciar seus processos escritos-criativos, além de perceber e acompanhar seu desenvolvimento, gerados por práticas de leitura, escrita, ensino, aprendizagem e pesquisa na educação.

O diário volta à minha vida na disciplina de Pesquisa Aplicada a Educação II, que tem como objetivo principal o estudo aprofundado de metodologias de pesquisa aplicadas a educação, componente integrante obrigatório do programa de mestrado em Educação e Diversidade da Universidade do Estado da Bahia, guiada pelas professoras Ana Lúcia Gomes da Silva e Juliana Salvadori, no registro dos momentos de estudos em sala de aula na plataforma digital Trello, do Google.

A experiência do diário online pôde mais que desenvolver a escrita autoral científica, mas o retorno a reflexão, o escrever, relembrar, revisar, e especialmente, teoricizar as aprendizagens construídas, nos mostra como este dispositivo é um forte potencializador no processo de autoconhecimento e para perceber os afastamentos e as aproximações das tessituras que podem se desenrolar neste processo de ensinoaprendizagem.

O constante processo auto-formativo é essencial para a realização destes deslocamentos, a reflexão, a retomada do processo reflexivo e das discussões realizadas em sala de aula são cruciais para o amadurecimento da formação do pesquisador. A teoria foge à sua instrumentalidade pura e passa a criar um conhecimento horizontal, onde a fala de cada um, cada aluno e aluna pode ser teoricizada e se tornar conhecimento, um pensamento necessário, uma voz sem sobreposição de outra. Sem dúvidas o diário é um dispositivo que endossa as políticas de descolonização do saber, da educação, de nossas mentes e corpos, onde todos os saberes construídos podem ser igualmente dignos de atenção e valor.

King nos diz que à teoria encontra cominhos diferentes, usos diferentes, para lugares diferentes, vejo que o diário ocupa esse lugar do diferente para atender e se encaixar as diversidades presentes no contexto da sala de aula, na disciplina PAE II pudemos perceber claramente a valorização das diferenças, em seus lugares de fala também diferentes a partir de cada sujeito que a constrói e vive.

Na escola que atuo, começamos a trabalhar com diários em dois projetos diversos, um na disciplina de física e outro na disciplina de redação, os dois diários de disciplina tem objetivo principal acompanhar as tessituras das alunas e alunos a partir de literaturas previamente escolhida pelas professoras das disciplinas. Ao final do ano faremos uma avaliação, juntamente com as alunas e os alunos, para perceber coletivamente, numa avaliação plural e horizontal, o potencial educativo deste dispositivo. À pretensão é que no próximo ano seja um meio de avaliação institucional utilizado comumente nas disciplinas que estão mais fortemente envolvidas com os processos de leitura, escrita e literatura, diversificando os processos avaliativos e promovendo maior autonomia dos sujeitos em seus processos de aprendizagem.

Superar a dicotomia entre teoria e prática é algo que a pedagogia transformadora pretende em seus objetivos, interiorizar o pressuposto que a teoria é uma prática social, e ao tomar ciência desta afirmativa podemos criar mecanismos reais para desconstruir com as formas de ensino e aprendizagem opressoras, colonizadoras, promotoras de silêncios e segredos, em corpos controlados, vigiados e passíveis de punição. Queremos mais, queremos liberdade.

Glória Anzaldúa nos escreve em cartas pedindo mais de cada uma de nós, mesmo que o discurso não seja ouvido, a escrita precisa ser iniciada, e ao escrever, refletimos um eu íntimo, nu, mas vestido de cultura e espírito. O diário pode contribuir para superar a recusa e as dificuldades no ato de escrever, pois nos permite liberdade. Tomo emprestado suas palavras ao dizer que escrever é uma alquimia, é o "ato de criar alma". Um veículo para curar, aprofundar, proteger e sobreviver. O que nos valida como mulheres, nos valida como escritoras.





43 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
Post: Blog2_Post
bottom of page