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1º Encontro do Ciclo Formativo

Atualizado: 8 de jul. de 2020

Dos estudos sobre diversidade à potencialidade das escritas de si


No dia primeiro de julho de 2020 demos início ao projeto Ciclos de Formação, da professora Ana Lúcia Gomes da Silva (pró Ana), titular da Universidade do Estado da Bahia, líder do grupo de pesquisa Diversidade, Formação, Educação Básica e Discursos - Difeba. Foi nos sugerido três leituras antecipadamente para auxiliar na fruição de ideias para discussão sobre Formação docente e as interfaces com a diversidade, especificamente a questão da mulher negra e surda.

Os textos para este primeiro encontro foram: ‘A mulher negra, pobre e surda’, de Eliza Maria Zago, Hilda Lopes Muniz e Leandro Alves Wanzeler. ‘Gênero e sexualidade: Temas silenciados na escola para alunos surdos?’, por Márcia Beatriz Cerutti Müller, Maria Angela Mattar Yunes e Denise Regina Quaresma da Silva. E também ‘Formação docente no ensino fundamental: interfaces com a diversidade’, por Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios, Fabrício Oliveira da Silva e Ana Lúcia Gomes da Silva.

Quando começo a escrever este texto me vem várias situações do cotidiano da escola pública, meninas negras, que passam por situações de racismo; não representarem suas turmas em desfiles e apresentações. Ou de alunas negras e surdas que se perguntam ‘porque não tem mais gente como eu aqui para conversar?’. Ou alunas trans que precisam superar os desafios que é usar o banheiro feminino, ser vista e aceita como ela realmente é, uma mulher.

As questões do ser envolvem muito mais do que apenas um corpo físico ocupando um lugar no espaço, envolvem, como sempre nos lembra professora Ana, é o dizer de si e de tocar o outro. Com nossos corpos, falas e gestos dizemos de si e tocamos os que nos cercam. A mulher que é atravessada por diversas questões, como raça, classe, gênero e deficiência, passa por questões de opressão que são atreladas as diversidades que à intersecciona. Pelo lugar que ela ocupa.

Bairros nos diz que "[...] a experiência da opressão é dada pela posição que ocupamos numa matriz de dominação onde raça, gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos. Assim, uma mulher negra trabalhadora não é triplamente oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas experimenta a opressão a partir de um lugar, que proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista e sexista."

Bairros fala que não existe hierarquia na opressão, devemos lutar contra todas as formas de opressão, a mão que me oprime pode um dia alcançar você. No caso da mulher negra deficiente, ela fica invisível no contexto social em que está inserida, desumanizada por não viver plenamente sua cidadania, lhes resta apenas rótulos e um atributo, a cega. Lhes sobrando apenas a compaixão, a pena, tida por ‘coitadinha’, incapacitada, segregada, vulnerável de ser violentada de diversas formas.

Na escola em que trabalho temos uma aluna negra e surda. Em conversa com a interprete de libras escuto o que sente a aluna. A interprete me diz que a aluna sempre se pergunta do porque só tem uma como ela na escola, porque não tem mais alguém que saiba libras para conversar com ela. Nos trabalhos em grupos a interação não é entre os colegas, mas somente com a interprete que traduz a vontade do grupo e o que designaram para a aluna como atividade, sem voz para sugerir ou discordar, aceita somente.

As questões do ser e tocar é um caminho duplo, da mesma forma que o corpo da aluna e as intersecções que lhe atravessam diz muito; mas não é interpretada da mesma forma em que a mensagem é enviada. E a resposta que ela recebe não é a mesma que deseja. Estamos falando de inclusão, de sentir, ser visto e ouvido, ser desejado, admirado e amado por quem se é.

A combinação de preconceitos é instantemente vivida no cotidiano das relações sociais. Mentes e corpos colonizados, uma história social nascida e crescida no machismo e no racismo. Na exclusão, opressão e morte do diferente, do diverso.

Outra situação na escola que atuo foi relacionada à uma aluna transsexual, no início do ano, na primeira série do ensino médio, não haviam meninas trans em toda a escola, e por direito e por ser, pelo seu gênero, ela usaria o banheiro feminino, mas houve um grupo resistente, incomodado, por dizer que ela não era quem diz ser, era um homem, nasceu homem. Foi feito um trabalho de sensibilização, informação, mas em nenhum momento permitimos que ela deixasse de usar o banheiro feminino. Pois caso contrário, usando o masculino, correria o risco de ser desrespeitada e inclusive ocorrer situações de abuso.

Em uma das conversas que tive com ela, ouvia ela dizer que alguns meninos à tratavam sem nenhum respeito, que faziam convites para ter relações sexuais como se tivessem fazendo um favor a ela, que ficavam bravos quando ouviam um não.

houve situações que a direção da escola teve que intervir, garotos da escola xingaram e aterrorizaram a menina trans, foi fora dos muros da escola, depois do horário da aula. Mas a escola não é limitada à suas paredes e intervimos, os pais foram chamados, os alunos advertidos, e rodas de conversas com os alunos na sala de aula foram montadas sobre a questão da mulher e especificamente o machismo. Tivemos respostas positivas entre muitos alunos e muitos professores.

Como coordenadora em nossos momentos formativos de AC tivemos oportunidade de estudar sobre a questão da mulher na sociedade, da mulher negra e trans em especial, pois a maioria das alunas são negras, pobres, e uma aluna trans; trabalhos interessantes foram feitos a partir disto, porém, infelizmente, sempre há alguém ou algumas pessoas que irão nos perguntar ‘O porque estudar sobre isso?’, ‘a escola não é para se ensinar isso’, “você não acha que se usarmos esses filmes que você indicou nas aulas, não vai incentivar os alunos a virarem gays?’, ‘será que vão sentir curiosidade e quererem experimentar ser gay?’, ou ainda são mais diretos, ‘não vou trabalhar isso, não tenho domínio sobre o assunto, ‘o tempo é muito corrido pra usar falando sobre essas coisas’, ‘isso é pra aulas de filosofia e sociologia, não pra minha disciplina, trabalho com números’.

No cotidiano da formação escolar percebemos muita insegurança nos professores em trabalhar com a diversidade, mas vemos também mentes que não querem abrir-se à descolonização, ao conhecimento e aproximação com a diversidade, por não ser seu lugar de convívio, seu lugar ser outro, sua forma de viver, crenças, religião, classe, raça, não a permite ver o outro, a tira de seu lugar seguro, poderia balançar as estruturas e os pedestais que sustentam a posição que ocupa.

Não basta utilizar o discurso que não é racista e não é machista, se não luta contra as opressões que acometem diversas pessoas na nossa sociedade, você está contribuindo para fortalecimento desta organização social, com seu corpo, com sua estética, com seu não, sua insegurança, seu afastamento diante das diferenças e diversidades. Pois o corpo fala, nossos gestos dizem muito, nosso lugar, de professora/or, coordenadora/or, diretora/or nos colocam em posições seguras e privilegiadas.

Precisamos tomar decisões diárias, no encontro do Ciclo formativo, a professora Ana nos recitou um verso de Clarice Lispector que dizia: “Aprendo contigo, mas você pensa que aprendo contigo as tuas lições, mas não foi. Aprendi o que você nem sonhava em me ensinar”. Temos muito poder, cada pessoa tem um poder incrível, devemos utilizá-lo para construir uma sociedade em que viver não seja um desafio, seja direito respeitado e garantido, que cidadania não reflita apenas em ter sua certidão de nascimento, mas que você viva em dignidade o lazer, a moradia, a saúde, o trabalho, enfim… Que consiga vivê-la em todas as suas dimensões.

No Ateliê que realizamos final de 2019 no município de Conceição do Coité, depois do evento, eu e algumas amigas saímos com as professoras para comer e beber, conversamos sobre tantos assuntos, olhar ao redor e ver todas as pessoas que você admira e te inspira ali tão perto, te ensinando, acolhendo, a tratando com importância e respeito, generosamente nos ensinando, eu e minhas amigas nos olhávamos e nos perguntávamos, vocês estão sentindo isso? Eu sinto que posso mudar o mundo, e voltei de lá acreditando que poderia criar um novo paradigma, baseado na ideia de que Eu sou porque Nós somos, no poder das histórias de vida, que toda história merece e deve ser contada, ouvida e sentida, e assim poderemos mudar.

Na escola incentivo os professores o uso do diário nas aulas, é uma ferramenta didática extremamente potente, uma vez, na época que cursava pedagogia na UNEB, ouvi que quem escreve aprende três vezes mais, imagine escrevendo sobre suas leituras, sobre suas aprendizagens, sobre suas aulas na escola, suas trilhas formativas, sobre si. O quanto se é capaz de refletir, porque à aprendizagem passa pela reflexão, escrevo e reflito três vezes, e é nas escrevivências de si que crio asas para me libertar dos muros e das correntes que me aprisionaram.

Durante uma tertúlia literária uma aluna nos contou como foi levar o livro para casa, a sua mãe a via com o livro, o Quinze de Raquel de Queiroz, o lendo, passava de um lado para o outro, e perguntou o que era aquilo, que tipo de livro era aquele, tão diferente do livro didático, a aluna, uma menina negra e da zona rural, disse que era um projeto de leitura da escola, e a mãe, analfabeta, nunca tinha tido acesso ao mundo literário, pediu que lesse o livro para ela, e a menina teve que ler o livro inteiro em voz alta. Eu me emocionei quando ela disse, a professora também, os colegas ficaram orgulhosos e felizes. E a própria aluna ao dividir o relato com os colegas percebeu o poder do que construiu com aquela ação, e ficou registrada em seu diário.

A educação é a chave, não podemos deixar de acreditar nela, não podemos deixar de acreditar em nós e nos outros, repito mais uma vez, há poder nas histórias de vida, elas ensinam e podem abrir mentes, quebrar correntes de mentes colonizadas pelo preconceito e pelo racismo, porque conhecer e admirar pode construir uma ponte para o ser, o sentir e o amar. E relembro que amar, não vem de um ideal romântico, é um verbo, é ação, e deve ser lembrado como tal.



Referências


ZAGO. Eliza Maria; MUNIZ, Hilda Lopes. WANZELER, Leandro Alves. A MULHER NEGRA, POBRE E SURDA: lutas e conquistas. Disponível em: http://legpv.ufes.br/sites/legpv.ufes.br/files/field/anexo/leandro_a_wanzeler_0.pdf.


MULLER, Márcia Beatriz Cerutti. YUNES, Maria Angela Mattar. SILVA, Denise Regina Quaresma da. GÊNERO E SEXUALIDADE: TEMAS SILENCIADOS NA ESCOLA PARA ALUNOS SURDOS? Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

GÊNERO


RIOS, Jane Adriana Vasconcelos Pacheco; SILVA, Fabrício Oliveira da; SILVA, Ana Lúcia Gomes da. FORMAÇÃO DOCENTE NO ENSINO FUNDAMENTAL: INTERFACES COM A DIVERSIDADE. Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 29, n. 57, p. 109-124, jan./mar. 2020.








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